É bastante provável que você conheça o site BuzzFeed (hoje, uma verdadeira franquia mundial, um gigante da mídia independente, com sede em diversos países) a partir de sua faceta do entretenimento: aqueles incontáveis testes engraçadinhos e nas compilações de memes e textos “lacrativos”. No entanto, o BuzzFeed tem uma interessante vertente no jornalismo, produzindo reportagens sobre temas ajustados à linha editorial do veículo, ou seja: assuntos que buscam esclarecer as mudanças do século XXI, como as tensões causadas pelas tecnologias, os conflitos comportamentais, as alterações nos conceitos da ciência e da medicina, etc.
Neste sentido, o programa Seguindo os Fatos, disponível na Netflix, é uma ótima porta de entrada para reconhecer a qualidade do jornalismo do BuzzFeed. Trata-se de uma série de reportagens longas (cerca de 18 minutos cada uma) que buscam discutir temáticas cercadas de polêmicas, e que demandam uma boa dose de coragem e lucidez dos repórteres do veículo para encará-las de frente, de forma honesta, sem um ranço do julgamento moral.
Todos os temas das reportagens são, no mínimo, surpreendentes. Em um deles, por exemplo, a repórter Azeen Ghorayshi retrata os locais que buscam garantir um lugar seguro para que viciados em opioides possam injetar a droga de uma forma menos arriscada. Vai atrás das políticas públicas em algumas cidades americanas, como Seattle, que encaram de frente o problema do vício em drogas. Entrevista pessoas viciadas que, em inesperada franqueza, falam sobre a sua situação. Numa proposta algo “gonzo”, a repórter chega a simular, em seu próprio corpo, o protocolo nestas “clínicas” para salvar pessoas em caso de overdose.
‘Seguindo os Fatos’ é uma série de reportagens longas que buscam discutir temáticas cercadas de polêmicas, e que demandam uma boa dose de coragem e lucidez dos repórteres do veículo para encará-las de frente, de forma honesta, sem um ranço do julgamento moral.
Ainda que o BuzzFeed seja um veículo com clara linha progressista, não é possível acusar essas reportagens de serem claramente ideológicas ou de fecharem-se para o contraponto em torno de todos os fenômenos abordados. Cito um exemplo: um dos episódios, chamado “Dia da prostituta”, aborda o conflito gerado por uma nova legislação que fiscaliza sites de sexo de forma a proteger as vítimas de tráfico sexual, mas que, no entanto, trouxe fortes prejuízos aos profissionais de sexo, que perderam várias proteções ao seu trabalho. O repórter John Stanton, de forma lúcida e equilibrada, tenta abordar todos os lados tensionados pela questão, sem tomar partido.
Outro caso que se encaminha para a mesma linha é o episódio “Direitos masculinos”, que aborda o Movimento pelo Direito dos Homens (MRA, na sigla original), que reúne uma alta quantidade de homens (e, curiosamente, também mulheres) que protestam em defesa dos direitos masculinos que teriam sido suprimidos pelo movimento feminista. Realizado pela repórter Scaachi Koul (que chegou ao assunto quando ela mesma foi alvo do ódio online simplesmente por pesquisar o assunto), a reportagem passa longe de uma abordagem debochada, tal como a que foi dedicada ao assunto em uma matéria do site Vice, outro gigante da mídia independente.
Com impressionante frieza, Scaachi tenta ouvir, de todas as formas, personagens de quem assumidamente discorda, mas a quem busca dar um espaço digno para que expresse seu ponto de vista, por mais questionável que ele seja. O que não significa que a reportagem não veicule uma mensagem clara: a de que os problemas enfrentados pelos homens são legítimos, mas não devem ser encarados por meio da culpabilização da mulher.
Há ainda alguns episódios que reportam mudanças nos fenômenos científicos e tecnológicos e que oxigenam, depois de um bom tempo, temáticas sobre as quais não costumávamos nos questionar. Na reportagem “Intersexo”, realizado pelo BuzzFeed em sua sede alemã, a repórter Juliane Löffler discute as novas leituras acerca da questão dos hermafroditas, cuja condição sempre foi vista como um problema médico que precisava ser resolvido (ou seja, milhares de crianças nessa situação foram submetidas a cirurgias que “decidiam” de qual sexo elas seriam), mas que, atualmente, é vista por vários especialistas como um terceiro gênero (o intersexo), os quais entendem essa intervenção cirúrgica como um violência naturalizada em direção a pessoas que, na verdade, não têm que arrumar nada em seus corpos.
Tal como ocorre nas reportagens do site do BuzzFeed, a narrativa de Seguindo os Fatos é leve, fluida e dialoga bem com os jovens. Além disso, mantém uma marca constante de abordar os bastidores da reportagem, numa perspectiva que lembra um pouco o programa Profissão Repórter, da Globo: os repórteres aparecem o tempo todo telefonando aos seus editores e falando diretamente com os espectadores. É bastante evidente que a vivência dos jornalistas é o centro de todas as reportagens.
Tudo isto coloca Seguindo os Fatos como uma agradável surpresa no catálogo da Netflix, revelando um conteúdo jornalístico de bastante qualidade e esclarecendo assuntos difíceis mas que precisam ser enfrentados.