Adaptações para cinema ou televisão de obras literárias, principalmente as consagradas por crítica e público, são muitas vezes apostas arriscadas. A linguagem literária tem diferenças cruciais da audiovisual e, com frequência, grandes livros rendem filmes medíocres, porque, além de frustrar as expectativas de leitores por eles apaixonados, não conseguem traduzir em imagens, em movimento e narrativa a complexidade e a magia encontradas nas páginas que lhes deram origem.
Mas há honrosas exceções. Uma delas é a excelente série A Amiga Genial, baseada nos romances da Série Napolitana, assinados pela escritora italiana Elena Ferrante, cuja verdadeira identidade permanece um dos maiores segredos do mundo literário mundial.
Cada temporada, com oito episódios, corresponde a um dos quatro livros da tetralogia, e a terceira, baseada no volume intitulado História de Quem Foge e de Quem Fica, já está disponível na plataforma de streaming HBO Max.
Para quem não leu os livros, ou assistiu às duas primeiras temporadas, A Amiga Genial reconstitui a profunda e atribulada relação entre duas amigas da classe trabalhadora napolitana, a partir das reminiscências de uma delas, a escritora Elena Greco, Lenu, que nutre por Raffaella Cerullo, Lila, imensa admiração desde a infância.
As protagonistas são primeiro meninas, depois adolescentes e, por fim, mulheres muito diferentes, quase opostas entre si. Lenu, filha de um funcionário público modesto, é estudiosa, sensível, tímida e romântica e, por meio da educação e das letras, vai se descobrindo aos poucos um ser político, uma feminista.
Lila, filha e irmã de um sapateiro, é o que o escritor argentino Júlio Cortázar chamaria de “cronópio”, ser imaginário por ele criado: algo antissocial, é única, forte, inteligente, intempestiva. A despeito disso, ela, ao contrário de Lenu, para de estudar muito cedo, no fim do primário, e se vê engolida pelas escolhas impostas por suas circunstâncias sociais, mas quase nunca sem reagir, ou transgredir.
Coprodução da HBO com a RAI, A Amiga Genial tem a seu favor um fator definitivo: a autenticidade.
Há entre as duas uma amizade profunda que atravessa o tempo, a partir da década de 1950. Não é, todavia, um relacionamento puro, idealizado e desprovido de altos e baixos. Como são muito diferentes, por vezes diametralmente opostas, há bocados de ressentimento, de frustração, que se acumulam à cumplicidade e ao afeto que as mantêm amigas ao longo dos anos.
Dialeto
Coprodução da HBO com a RAI, A Amiga Genial tem a seu favor um fator definitivo: a autenticidade. Por pressão dos produtores, entre eles o cineasta Paolo Sorrentino (de A Grande Beleza e A Mão de Deus), a série é gravada em dialeto napolitano e italiano. Mais do que isso: as jovens atrizes que vivem Lenu e Lila na adolescência e na fase adulta, as estreantes Margherita Mazzucco e Gaia Girasse, são da região de Nápoles, assim como boa parte do elenco, incrível.
Com direção do cineasta romano Daniele Luchetti (de Laços), a ação da terceira temporada, que também recebe o título de “História de Quem Foge e de Quem Fica”, se desenrola nos anos 1970, quando as duas amigas, já adultas, vivem existências muito diversas que se entrecruzam.
Lenu, que lançou no fim da segunda temporada um romance autobiográfico, casa-se com o professor universitário Pietro, filho de uma família de intelectuais, e se muda para Florença. Lila, depois de abandonar um casamento sem amor, leva uma vida bastante dura em Nápoles, onde trabalha em péssimas condições numa fábrica de embutidos, onde sofre todo tipo de abusos.
São tempos de confronto entre direita e esquerda, fascismo e comunismo, na Itália e esse ambiente de crescente tensão política e violência não se limita a ser um pano de fundo em A Amiga Genial.
O confronto de ideias, por vezes violento, permeia e invade a narrativa, que, como nos livros de Ferrante, tem como foco central a condição feminina e a complexa relação entre as duas protagonistas, tão misteriosa quanto a identidade de Ferrante, que coassina os roteiros, o que mantém viva e pulsante a integridade da trama.
Há na série ecos do cinema político de cineastas italianos como Bernardo Bertolucci, Elio Petri, Marco Bellocchio e Ettore Scola nos anos 1960 e 70.
Cada uma à sua maneira, Lenu e Lila são heroínas que enfrentam e desafiam as múltiplas armadilhas armadas em suas vidas pelo patriarcado, pelo machismo, dentro e fora de suas casas, no âmbito privado e público. É fascinante acompanhar suas jornadas através das décadas.
Que venha a derradeira temporada, adaptação de A História da Menina Perdida, já confirmada!
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