Ryan Murphy conseguiu novamente. Talvez o criador de American Horror Story e Scream Queens não esteja muito feliz com as últimas reações de público e crítica para com suas produções, mas, este ano, parece ter se redimido em uma pequena obra-prima para seu currículo, ainda que a história não leve apenas seu nome. A minissérie American Crime Story: The People vs. O.J Simpson não traz somente entretenimento puro e imperdível, como levanta questões relevantes para os Estados Unidos e, por que não, para o mundo todo.
Antes de nos aprofundarmos na série, vamos a uma breve explicação. American Crime Story é o novo projeto de Ryan Murphy para o canal americano FX, que pretende mostrar uma antologia de crimes. Cada temporada vai contar uma história independente, baseada em algum crime real que ganhou comoção pública e foi pauta de notícias por meses. O projeto é diferente da série da ABC, American Crime. Embora tenha a mesma proposta e quase o mesmo nome, esta última conta histórias de crimes com pessoas anônimas, que não tiveram grande atenção da mídia.
Para os mais novos e para nós, brasileiros, o nome O.J. Simpson talvez não desperte muita coisa. Para os norte-americanos, é a lembrança de um dos escândalos mais chocantes protagonizado por uma figura idolatrada, um jogador de futebol aclamado por todo o país. É como se Pelé ou Neymar se envolvessem em um caso de homicídio aqui no país. O.J. Simpson foi acusado de matar sua ex-mulher e um amigo dela em junho de 1994. Nicole Brown e Ronald Goldman foram encontrados no jardim da casa onde ela vivia e seus corpos apresentavam golpes de faca na cabeça e na nuca.
Naquela época, autoridades pediram que o ex-atleta se entregasse, mas ele não compareceu ao posto policial. Horas depois, foi flagrado dentro de um carro branco, dando início a uma perseguição pelas ruas de Los Angeles, televisionada ao vivo para milhões de pessoas. Multidões também assistiram nas ruas à passagem dos veículos pela cidade, enquanto helicópteros dos canais de TV acompanhavam o trajeto. Ele acabou se rendendo uma hora e meia depois, iniciando um dos julgamentos mais surpreendentes do sistema jurídico norte-americano.
Para sua defesa, O.J. Simpson contratou um time de advogados caros e famosos, como Johny Cochran, este contratado por Robert Shapiro para ser um rosto negro no julgamento. O melhor amigo de O.J. era o também advogado Robert Kardashian, pai de alguns dos filhos de Kris Jenner, matriarca da família que hoje é dona de um império de reality show, o “clã dos Kardashian”.
Já a promotoria, que defendia a família das vítimas, era formada por Marcia Clark e Christopher Darden. Enquanto Marcia foi atacada pela mídia até o final do julgamento, Chistopher se manteve como o companheiro fiel, que lutou até o fim para provar a culpabilidade de O.J. Os detalhes do julgamento são facilmente encontrados na Internet, mas caso você, leitor, não saiba nada sobre a história, recomendo assistir à série um pouco no escuro, já que todas as reviravoltas que acontecem são impactantes, inacreditáveis e verdadeiras.
Uma narrativa que deixa muitos filmes de tribunais morrendo de inveja.
American Crime Story, entretanto, não é excelente só por causa do andamento das investigações. O julgamento todo foi televisionado, então podemos facilmente encontrar vídeos no YouTube sobre todo o caso. O que faz da série tão especial é o contexto, os bastidores, o que os EUA estavam vivendo naquele momento. Apenas dois anos antes dos acontecimentos com O.J. Simpson, uma série de manifestações e casos de violência apareceram em Los Angeles após a polícia da cidade ter sido absolvida de crimes de agressão contra Rodney King, taxista negro espancado por policiais após ser flagrado em alta velocidade. A absolvição dos policiais, em 29 de abril de 1992, por um juri formado por dez brancos, um negro e um asiático, provocou uma das maiores ondas de violência da história da Califórnia. Foram três dias de confrontos, incêndios, saques, depredações e uma onda de crimes que causaram 58 mortes. Assim, os Estados Unidos viviam em constante tensão racial, momento no qual policiais plantavam provas para incriminar negros e escondiam um racismo internalizado.
Baseado no best-seller The Run of His Life: The People v. O.J. Simpson, Ryan Murphy, Scott Alexander e Larry Karaszewski não levam a série apenas como uma história de tribunal e nem recontam um enredo já conhecidao. Diferente de The Jinx ou Making a Murderer, saber se O.J. é culpado ou inocente não importa em nada, porque o caso já foi discutido incansavelmente. O que importa é entender as circunstâncias que levaram ao veredito, mostrar uma sociedade tão egoísta e deslumbrada que todo o caso poderia acontecer em 2016 e o resultado seria exatamente o mesmo. O caso de O.J., então, acaba sendo usado apenas como um pano de fundo para contar como a questão racial ainda assola e impacta o mundo todo e como verdades absolutas podem ser subjetivas dependendo do ponto de vista. Nós vemos como o racismo, a mídia, a fama, o sexismo, a misoginia e um povo deslumbrado afetam e mudam a decisão de toda uma nação, aqui representada por um júri que vota baseado em emoções.
Saber se tudo o que é mostrado na tela é verdadeiro ou não também não importa, já que a série é baseada em um livro. Tudo em American Crime Story se fundamenta no ser humano e sua capacidade de ser manipulado. Desde a competente equipe de defesa formada por advogados que decidiram transformar um caso de homicídio em uma grande discussão sobre racismo (e que, de fato, também era) até o horroroso e injusto tratamento sexista e misógino que a promotora Marcia Clark viveu durante meses, nada na série é gratuito. Os roteiristas constroem um enredo tão competente que cada detalhe influencia os acontecimentos seguintes, em uma narrativa que deixa muitos filmes de tribunais morrendo de inveja. Absolutamente nada é entediante e cada diálogo e situação são relevantes, até mesmo quando decidem focar na vida pessoal dos advogados de defesa e acusação.
A cobertura midiática também é um dos grandes acertos da produção. Desde o primeiro momento, American Crime Story mostra como a mídia pode afetar um julgamento coerente, inflamando e dividindo pessoas, divulgando informações irrelevantes, expondo situações privadas (a foto nua de Marcia Clark, o caso de violência doméstica de Johny Cochran) e transformando todo o caso em um circo. A televisão americana exerceu tanto poder durante o julgamento que os advoogados, especialmente os de defesa, utilizaram o meio para influenciar a opinião pública e impactar, de alguma forma, o júri popular, enclausurados durante meses em um hotel, mas que vez ou outra acabavam sabendo de informações privilegiadas.
Para contar os bastidores do “julgamento do século”, os roteiristas não podiam diminuir a importância de Marcia Clark dentro da narrativa. Interpretá-la também era um desafio e ficou a cargo de Sarah Paulson vivê-la. Em uma atuação impressionante, Paulson consegue mostrar todas as nuances de uma mulher odiada por pessoas que a julgavam pela aparência. São cenas cruéis, fortes e extremamente tocantes, como quando a promotora é acusada de incompetência apenas por ser mãe. Paulson consegue, com muita delicadeza, mostrar a batalha intrapessoal durante todo o julgamento e será bastante surpreendente se ela não levar o Emmy de melhor atriz este ano.
Mas em questões de atuação, a série acerta com todos, desde figurantes até os principais atores. É impressionante como uma escalação bem feita consegue fazer a diferença para um texto já muito bem construído. Aqui, temos John Travolta saindo da zona de conforto e atuando de forma inspiradora, com um trabalho bom especialmente na transformação física e no sotaque. Courtney B. Vance consegue ser amado e odiado pelo público na mesma proporção, em outra atuação impecável, assim como Sterling K. Brown, que divide com Courtney os melhores diálogos sobre a questão racial. David Schwimmer, que vem há anos tentando se livrar de seu Ross Gellar (Friends), entrega uma atuação delicada, especial e comovente, que pode render bons frutos para o ator daqui para frente, e Cuba Gooding Jr. volta a fazer um trabalho digno depois de anos aceitando papéis medíocres.
Em um caso real em que um julgamento de homicídio acabou virando um circo sensacional acompanhado por milhões de pessoas, a série consegue estabelecer os contrapontos delicados e extremos de forma competente. De um lado, a acusação de assassinato no que parece ser um crime passional. Do outro lado, uma versão de crime racial facilmente compreensível.
Embora a série tome uma posição muito clara, fica bastante complicado para o público tomar uma decisão. O maior acerto, então, é conseguir colocar toda a audiência de hoje dentro daquela confusão. Durante os 10 episódios, fica fácil afirmar “ele é culpado” quando a acusação tem poder de falar, para logo depois pensarmos melhor e afirmarmos “ele pode ser inocente” quando é a vez da defesa.
Com um final agridoce (afinal, a história ao longo dos anos provaria como o julgamento foi conduzido de forma errada), American Crime Story acaba por ser uma experiência televisiva catártica, nervosa e, certamente, uma das melhores produções do ano. Todos os episódios carregam uma tensão palpável, mesmo quando a câmera está estática, mesmo com alguns exageros na direção de Ryan Murphy.
Com uma fotografia mais do que eficiente e uma ambientação impressionante dos anos 1990, a série relembra quem viveu aquele momento e dá um belo simulacro do que foi toda aquela situação para quem nunca ouviu falar. Novamente, discutimos como o sistema judiciário pode ser falho e como nós, meros espectadores, nos encantamos com escândalos midiáticos.