Eu demorei 12 anos para assistir à premiada minissérie Angels in America (HBO, 2003). Mas em uma conversa sobre seriados, um amigo comentou que não tinha palavras para descrever quão boa era a produção. Assim, decidi finalmente conferir. E embora minhas palavras sejam poucas para descrever tamanho brilhantismo, é necessário registrar a experiência de assistir a algo tão precioso feito para a televisão.
Em 1985, o presidente americano Ronald Reagan ocupava a Casa Branca e a aids surgia de forma desenfreada. Em Nova York, Prior Walter (Justin Kirk) conta ao seu namorado Louis Ironson (Ben Shenkman) que está com a doença. Assustado, Louis decide abandonar o companheiro. Enquanto a doença de Prior começa a se agravar, ele passa a sonhar com um anjo (Emma Thompson), que lhe diz coisas sobre seu futuro e o futuro de toda a humanidade.
Joe Pitt (Patrick Wilson), mórmon ortodoxo e homossexual enrustido, é um advogado em ascensão e assessor jurídico do influente, corrupto, racista e homofóbico Roy Cohn (Al Pacino, em uma atuação monstruosa). Joe recebe uma proposta de Roy para assumir um importante cargo no Departamento de Justiça de Washington. Ele está inclinado a aceitar o emprego e mudar de vida, mas sua esposa Harper (Mary-Louise Parker) se recusa. Viciada em Valium e com sérios problemas emocionais, Harper percebe que o marido é gay, mas tem medo de encarar a verdade. Assim, passa o dia ouvindo vozes e conversando com pessoas imagináveis.
Paralelo a isso, descobrimos que o poderoso Roy, que se diz heterossexual mas sai com homens, está com aids, mas nega a doença (“Homossexuais são pessoas que não têm poder”). Quando a doença progride, Roy é internado em um hospital e obrigado a receber ajuda do enfermeiro Belize (Jeffrey Wright), negro e gay, materializando todos os seus preconceitos. Cada vez mais debilitado, Roy começa a receber a visita do fantasma de Ethel Rosenberg, judia que foi executada em 1953 após ser condenada, com a ajuda de Roy, por espionagem.
No meio de toda essa gama de histórias, ainda temos a chegada de Hannah Pitt (Maryl Streep), mãe de Joe. É ela que, sem intenção, começa a interferir positivamente na vida de quase todas essas pessoas
A minissérie, entre todas as coisas, mostra as almas torturadas daqueles personagens que, de uma forma ou de outra, buscam redenção, seja por meio de sonhos com anjos ou por alucinações causadas pela dor.
Roteirizado por Tony Kushner e baseado em sua própria peça, considerada uma das mais importantes do século passado, Angels in America poderia facilmente se perder na confusão de personagens, mas a direção de Mike Nichols (Quem Tem Medo de Virgina Wolf?, A Primeira Noite de um Homem) consegue algo raro na televisão: dialogar com o teatro de forma eficiente. Se na mão de outro diretor isso poderia descambar para o ridículo, a maneira teatral e mística encanta logo de cara.
De forma inteligente, Nichols não tenta adaptar a peça para a televisão, mas explora os dois formatos, transformando a obra num delírio onírico homoerótico. E é engraçado constatar que justamente esse dialogismo entre teatro e televisão não permite que a obra seja universal. Embora a qualidade do roteiro e da direção sejam inegáveis, o formato pode afastar os que não estão acostumados com os monólogos característicos do palco ou as longas frases impactantes, por vezes exageradas, mas que funcionam muito bem no teatro.
Mas o que salta aos olhos em Angels in America é mesmo seu tema principal: a epidemia da aids em um governo extremamente conservador. Se hoje o tratamento contra o vírus salva milhões de pessoas, na época a síndrome estava apenas começando e embora já tivesse um nome e um esclarecimento maior sobre as formas de contágio, ainda era diretamente associado a homossexuais e intitulado maldosamente de “praga gay”. Em um período em que somente cerca de 30 pessoas nos EUA tinham acesso ao AZT, remédio que se mostrava mais efetivo no controle da doença, quem admitia ter o vírus era praticamente condenado à morte.
O texto de Kushner consegue transmitir a crueldade do drama da aids na época, ao mesmo tempo que trabalha com um material extremamente delicado que pode acessar as emoções mais profundas de seu público. Utilizando-se da imaginação em cenas que mais parecem sonhos, o roteiro ainda arranja tempo para um humor inteligente e uma crítica feroz à sociedade americana.
A minissérie, entre todas as coisas, mostra as almas torturadas daqueles personagens que, de uma forma ou de outra, buscam redenção, seja por meio de sonhos com anjos ou por alucinações causadas pela dor. Outros personagens buscam sentido para suas vidas e para a solidão. E, no meio de várias reflexões, o público ainda se pega pensando sobre coragem, solidariedade, política, existência e amor. Angels in America mostra sua complexidade e genialidade ao levar seu público a um caminho tortuoso que pende para a fé, a fantasia e a dolorosa realidade. As escolhas dependem de cada um e seu repertório de vida.
Em meio a tantos acertos, Nichols ainda triunfa na escalação e direção de seus atores, conseguindo extrair o melhor de cada um deles. Jefrrey Wright se mostra perfeito em seu papel de enfermeiro e amigo, cuidando de cada gesto para fazer com que cada aparição sua seja marcante. Ben Shenkman e Justin Kirk mostram uma química absurda. O primeiro por passar todo o remorso em abandonar o namorado e o segundo rouba quase todas as cenas quando começa a entrar numa paranoia e delírio por ter sido abandonado.
Patrick Wilson (O Fantasma da Ópera, Invocação do Mal) consegue transpor perfeitamente o papel de marido mórmon, republicano e reprimido, ao mesmo tempo em que se mostra extremamente emocionado ao libertar-se das amarras religiosas para se abrir a novas experiências e ser, finalmente, quem realmente é. Mary-Louise Parker, no papel de esposa viciada em medicamento e que vive num mundo paralelo, entrega a melhor atuação de sua carreira até hoje (melhor até que em Tomates Verdes Fritos ou Weeds).
E mesmo que seja redundante falar dos outros três atores, conferir a atuação de Al Pacino, Meryl Streep e Emma Thompson é um deleite. Pacino entrega um personagem detestável, mas que consegue nos fazer sentir pena. Streep, embora discreta, encanta ao interpretar múltiplos personagens (ela é o rabino no começo da série) e Thompson atua de forma teatral e absolutamente brilhante com suas longas e pausadas falas.
Assim como esse texto está cheio de adjetivos e superlativos, tudo em Angels an America é grande. Além do elenco, direção e roteiro, a trilha sonora é composta por Thomas Newman, responsável pela música-tema de Six Feet Under e de filmes como Estrada para Perdição e Procurando Nemo. A minissérie levou todos os prêmios a que estava indicada, tanto no Globo de Ouro como no Emmy. É, por fim, um evento.
E é curioso perceber que muitas pessoas confundem a minissérie com um filme. É a eterna constatação de que a televisão entrega pérolas que derrubam qualquer argumento sobre a falta de cultura ou efemeridade da “tela menor”.
Efêmera, aliás, é tudo o que Angels in America não é. Após mais de 10 anos, a minissérie se mantém como uma das obras mais importantes, obrigatórias e corajosas da história da televisão.