Se você está circulando nas redes sociais no último mês, certamente já cruzou com publicações falando sobre uma minissérie da Netflix chamada Bebê Rena, que está nos primeiros postos dos mais assistidos da plataforma. Curiosamente, a série escrita e estrelada pelo comediante Richard Gadd é um caso raro de sucesso popular com qualidade inegável.
Mas o mais impressionante é constatar o tema de Bebê Rena: a intrincada dinâmica que envolve pessoas abusadas e seus abusadores. Toda a trama que gira em torno do fracassado Donny Dunn (Gadd) e sua stalker Martha (Jessica Gunning, em um trabalho irretocável) é tão desgraçadamente incômoda que é até difícil acreditar que muita gente tenha chegado até o final.
O fato é, tal como um acidente de carro horrível do qual não conseguimos tirar os olhos, Bebê Rena também consegue nos hipnotizar, mesmo que a sensação causada por ela seja quase todo o tempo da mais pura aflição. E a razão talvez seja essa: a série consegue traduzir em narrativa as sensações que envolvem pessoas que se metem em situações abusivas, seja como abusadores ou abusados.
O verbo “meter” é proposital, e sugere algo difícil de assumir: que, entre pessoas adultas, há sempre uma parcela de responsabilidade de quem permanece nessa situação. A hipótese aqui é que, quem já passou por isso, acaba se conectando com a série por meio da identificação; já os sortudos que nunca estiveram em uma relação abusiva permanecem vendo pela sensação de estarem pasmos com o que alguém como Donny é capaz de se submeter.
‘Bebê Rena’: passeio por vários gêneros
Bebê Rena é daquelas séries que vale a pena não saber muito antes de assistir.
Em tempo: Bebê Rena é daquelas séries que vale a pena não saber muito sobre antes de assistir. Mas basta aqui dizer que se trata da história real (apresentada pela primeira vez por Richard Gadd como um show solo em 2019, em um festival de Edimburgo, na Escócia) de um comediante sem sucesso que trabalha como garçom em um pub inglês.
Um dia, uma mulher chega, senta no bar e ele, por pena, serve uma bebida de graça para ela. É a chave para que ela tente a todo custo chamar sua atenção e se tornar cada vez mais próxima dele. Em suma, ela vai se tornando a sua stalker. Ao mesmo tempo, Donny se apaixona por uma mulher chamada Teri (Nava Mau, excelente no papel), mas a consolidação do seu romance com ela parece estar truncado por conta da mulher obsessiva. Aos poucos, vamos entendendo que o buraco é mais embaixo.
Nos primeiros dos sete capítulos, uma questão pulsa a todo instante: por que Donny não corta a mulher desagradável? Por que ele parece ser absurdamente tolerante com uma mulher que não para de assediá-lo, de forma cada vez mais detestável? A resposta à dúvida é a chave para entender a força de Bebê Rena, que tem como trunfo conseguir construir essa história para além de um óbvio maniqueísmo.
O que vamos descobrindo é que há uma espécie de relação simbiótica ali, que envolve culpa, baixa auto estima, identificação e muita repressão sexual. Entendemos aos poucos que Donny se odeia, e que sua péssima visão de si mesmo faz com que ele se ligue com uma mulher igualmente miserável. Ambos, portanto, são mais próximos do que parece.
Em termos de estrutura narrativa, a grande sacada de Bebê Rena é conseguir surpreender o espectador a cada instante. Há um passeio interessante entre os gêneros em uma espécie de quebra-cabeça que nos pega o tempo todo, alternando tensão com momentos de pura comicidade. A plateia, de todo modo, não é poupada: não espere resoluções confortáveis ao drama de Donny.
Em resumo, Bebê Rena não é para os fracos. Mas quem consegue mergulhar nessa história, sai dela recompensado. Nem que seja aprendendo alguma coisinha a mais sobre si mesmo.
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