Por décadas, Cem Anos de Solidão, obra-prima de Gabriel García Márquez, resistiu à sedução das imagens em movimento. O próprio autor colombiano, ciente da vastidão mitopoética de sua narrativa, recusava-se a permitir qualquer tentativa de adaptação audiovisual. Tinha razão: transformar em imagens a saga dos Buendía, com seus ciclos temporais, suas camadas de simbolismo e suas personagens condenadas a repetir os próprios destinos, é empreitada de raro fôlego criativo.
Com o aval dos filhos do escritor, Rodrigo García e Gonzalo García Barcha, e sob a chancela da Netflix, a adaptação enfim se concretiza como uma minissérie ambiciosa, dividida em duas partes e com mais de 16 horas de duração. A primeira, dirigida por Alex García López e Laura Mora, é um feito estético e narrativo que não busca simplificar a complexidade do original, mas antes respeitar seu ritmo interior, sua musicalidade própria e sua densidade simbólica.
Desde o primeiro episódio, intitulado “Macondo”, compreende-se que não se trata de um melodrama latino-americano embalado por efeitos digitais ou recursos fáceis. O que se vê é uma aposta consciente na construção do tempo como matéria dramática. A travessia de José Arcadio Buendía (Marco Antonio González) e Úrsula Iguarán (Susana Morales), do vilarejo natal até a fundação de Macondo, não é apenas geográfica: é a travessia da culpa, do desejo e da recusa à repetição do mundo.
A série opera como um gesto de fidelidade à linguagem de Márquez — não apenas no conteúdo, mas sobretudo na forma. A direção de fotografia, assinada por Paulo Pérez e María Sarasvati, constrói imagens que se estendem como lembranças que se recusam a se dissipar. O tempo não avança em linha reta: ele gira, dobra-se sobre si mesmo, reverbera. Cada plano é uma memória que se reativa, como os fantasmas que perambulam pela casa dos Buendía — não como assombrações, mas como prolongamentos do presente.
A cenografia de Bárbara Enríquez e Eugenio Caballero amplia essa proposta ao conceber Macondo como espaço suspenso entre o real e o mítico. Não há aqui realismo mágico no sentido superficial do termo, mas sim um entendimento profundo de que a realidade latino-americana, especialmente a colombiana, é atravessada por uma lógica que desafia a razão cartesiana. O que a série faz é dar corpo e cor a esse ethos, por meio de cenas de assombrosa beleza: uma menina que sangra em uma banheira no meio do rio, um morto que se recusa a descansar, um pão sobre a mesa que carrega mais história do que diálogos inteiros.
Não há aqui realismo mágico no sentido superficial do termo, mas sim um entendimento profundo de que a realidade latino-americana, especialmente a colombiana, é atravessada por uma lógica que desafia a razão cartesiana.
A narrativa não se apressa. Ao contrário, recusa a lógica do consumo rápido e do entretenimento descartável. Em tempos de algoritmos e narrativas aceleradas, Cem Anos de Solidão nos convida à contemplação, ao gesto de escuta do tempo lento das coisas. Esse tempo, no entanto, não é o do marasmo — é o da densidade. A densidade da política, da genealogia, do trauma familiar, da repetição histórica.
É notável, por exemplo, o modo como a série articula a expansão de Macondo à emergência de forças políticas externas. Ao chegar ao sexto episódio, centrado no coronel Aureliano Buendía, somos lançados ao coração da Guerra dos Mil Dias — conflito real que dividiu a Colômbia entre conservadores e liberais. A violência irrompe, não como evento isolado, mas como continuidade daquilo que sempre esteve em germe: o desejo de controle, a sede de poder, a ilusão de liberdade.
O elenco atua com precisão contida. Marleyda Soto, como a Úrsula madura, equilibra firmeza e ternura com rara nuance. Diego Vásquez, que assume José nas fases posteriores, entrega um personagem cada vez mais tomado pela obsessão — não mais pelo futuro de seus filhos, mas por suas máquinas, suas fórmulas, seus delírios. Rebeca, vivida por Nicole Montenegro e Laura Grueso, é outra figura emblemática: sua presença na casa dos Buendía, trazendo consigo um saco de ossos, é um gesto de prenúncio, um corpo que antecipa a decomposição das estruturas familiares.
É verdade que o ritmo vagaroso da série pode soar excessivo para quem busca um envolvimento imediato. Mas há aqui uma lição clara: Cem Anos de Solidão não se presta à pressa. A série entende que a repetição é forma e conteúdo. Como os Buendía, somos levados a reviver traumas, paixões e perdas, geração após geração. Não por descuido, mas porque a história — pessoal ou coletiva — raramente se fecha em si mesma.
Mais do que uma adaptação literária, esta primeira parte de Cem Anos de Solidão é um ensaio visual sobre o tempo, a memória e o destino. Um gesto de reverência não só a García Márquez, mas à tradição oral, à história latino-americana e à possibilidade de fazer da imagem algo mais do que ilustração: fazer dela pensamento.
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