Aprimeira temporada de Fargo veio com muita desconfiança. Adaptar o premiado filme dos irmão Coen para a televisão era uma pretensão desnecessária. Anunciada como minissérie, logo o FX garantiu sua renovação, porém, como antologia, agora com novos atores e histórias independentes, ainda que com diversas ligações entre a primeira temporada e o filme original.
A desconfiança voltou. Com ela, também, a pretensão. Fargo é pretensiosa em cada frame, diálogo ou jato de sangue. Se na primeira temporada isso me incomodou um pouco, na segunda logo tratei de deixar a implicância de lado. O segundo ano é uma das coisas mais brilhantes da televisão, com leves escorregadas que não comprometem a experiência.
A história mostra a trajetória do policial Lou Solverson (Patrick Wilson), que retornou recentemente da Guerra do Vietnã, personagem vivido pelo vencedor do Oscar Keith Carradine na primeira temporada. Situada em 1979, em meio ao frio intenso e a neve opressora de Minnessota, Fargo começa absolutamente violenta e irônica, quando ocorrem vários assassinatos em uma lanchonete em Sioux Falls, Dakota do Sul, que começam a ser investigadas por Lou e seu sogro e xerife, Hank Larsson (Ted Danson).
Os crimes parecem ter ligação direta com uma família de mafiosos da cidade. No meio da confusão e completamente ao acaso, aparecem o casal pacato e simpático Ed Blomquist (Jesse Plemons, de Friday Night Lights) e Peggy Blomquist (Kirsten Dunst, ótima). Suas ações, atrapalhadas e sem noção, dão complexidade ao roteiro e vão deixando tudo mais absurdo.
Dito isso, Fargo assume uma identidade própria. Diferente de Ryan Murphy e suas incansáveis antologias (American Horror Story), Noah Hawley, o criador, mantém o nível da primeira temporada, sendo, às vezes, bem superior. A direção, roteiro, fotografia e trilha sonora são seguras, sofisticadas, certeiras, inteligentes, e o público se vê sem fôlego diante do que é visto na tela. E seguindo sua própria identidade, sem mostrar cansaço ou falta de criatividade, Fargo continua encantando ao mostrar um grupo de pessoas cometendo um crime, que eventualmente dará errado, com pessoas erradas, na hora errada e que, episódio após episódio, vão complicando o roteiro e deixando tudo mais interessante.
É a história de uma tragédia cômica americana na qual vemos relances de normalidade dentro do absurdo.
Assim, os roteiristas e produtores (com os próprios irmãos Coen na produção executiva) se mostram ótimos contadores de histórias. Primeiro, porque mentem para o público mais desavisado, insistindo em informar que aquela história é baseada em fatos reais, o que não é verdade. Segundo, por conseguirem contar uma história extremamente artificial e fantástica sem que isso soe forçado.
As atitudes dos personagens, claro, chamam atenção pelo exagero e burrice, mas tudo é proposital. Ainda, todos os personagens são aproveitados e todos podem sumir do enredo, já que não possuem obrigações de aparecerem em outras histórias que venham a ser contadas. Tudo isso tendo como pano de fundo os Estados Unidos do final da década de 1970, com mulheres começando a obter autonomia e mudanças sociais acontecendo ao redor.
E se na primeira temporada tivemos Lorne Malvo e Molly Solverson, a segunda traz Peggy e Mike. Os dois vão desempenhando um papel tão importante na história que logo acabam virando os protagonistas, e suas ações, por menor que sejam, influenciam todos os personagens ao redor. Mas é Peggy quem realmente rouba a cena. Vivida pela ótima Kirsten Dunst, a personagem é uma psicopata das mais assustadoras, ainda que não se dê conta disso e faça tudo com a melhor das intenções.
Assim, ao mesmo tempo em que nos choca vermos Peggy atropelar um homem, trancá-lo na garagem de casa e ir fazer o jantar, ficamos fascinados com sua doçura e ingenuidade. E Dunst, indicada ao Globo de Ouro pelo papel, constrói uma personagem complexa, sendo, de longe, a melhor coisa da temporada.
Fargo também acerta no maniqueísmo, algo prejudicial na maioria das narrativas atuais, mas que funciona na série. Ainda que haja um ensaio sobre o comportamento humano e sobre como somos sombrios, Fargo acaba sendo entretenimento puro. O público torce pelos bonzinhos, que são personagens corretos e decentes sem serem chatos, ao mesmo tempo em que adoram a violência explícita, imagética e cruelmente divertida.
Fargo também é muito bem montada, tendo inspirações claras em produções cinematográficas dos anos 70, como dividir a tela em diversos momentos dos episódios, utilizar imagens granuladas, filmar com um estilo que lembra muito alguns filmes de Scorsese, Boorman e Peckinpah, entre outras coisas. A paisagem, sempre ampla e repleta de neve, é mostrada ao público por planos abertos e lentos. A narrativa também não tem pressa de ser contada, com primeiros episódios um tanto quanto lentos, mas que, tal como Breaking Bad, vão ganhando corpo até aquele emaranhado de situações erradas começar a mostrar suas consequências.
Mas se Fargo manteve a qualidade de seu primeiro ano, o seu único erro foi, veja só, também repetir o erro da temporada passada. Há uma insistência para incluir no roteiro algum elemento sobrenatural (neste ano, discos voadores) que não leva a lugar algum. Não há conclusão ou qualquer relevância para o restante da história, parecendo alguma sacada genial dos roteiristas e que não é absorvida pelo público, deixando a incômoda impressão de ser algo intocado, inteligente, uma piada interna que não é explicada.
Mas isso é um detalhe perto de tudo o que é visto. Com um impressionante cuidado, Fargo encanta do primeiro episódio ao último. É a história de uma tragédia cômica norte-americana na qual vemos relances de normalidade dentro do absurdo, provando que é uma das melhores produções atuais e que merece muito mais exposição do que já tem. Fargo é uma joia de estilo, violência, ironia e originalidade.