Há algo de profundamente irônico em O Urso: a série que redefiniu o drama culinário contemporâneo parece, agora, sentir o peso das escolhas que a tornaram tão reverenciada. Sua quarta temporada, retomando o fio solto deixado pela terceira, é simultaneamente um acerto de contas e uma tentativa de reenquadramento. Não é, como querem os entusiastas mais indulgentes, a consagração definitiva da obra. Tampouco é o tropeço estético que alguns consideraram ser a temporada passada. Trata-se, antes, de um ajuste de rota — e é justamente nesse movimento de correção que a série ganha ar novo, mesmo sem recuperar totalmente o frescor de seu auge.
Desde o primeiro episódio, O Urso parece consciente de que seu maior desafio é narrativo. O relógio que marca a contagem regressiva para o fim do capital investido funciona menos como elemento dramático e mais como recurso metalinguístico: os criadores parecem sussurrar ao espectador que eles também estão cientes da urgência, não apenas financeira, mas artística. A pergunta que paira sobre Carmy, Sydney e os demais personagens ecoa para fora da diegese: se a série está apenas se mantendo de pé, por que continuar?
A resposta, embora nunca explicitada, se insinua na mudança de foco que marca a temporada. A intensidade febril — marca registrada das primeiras fases — dá lugar a uma narrativa mais concentrada, em que os excessos formais, por vezes interpretados como virtuosismo, cedem espaço para uma retomada de simplicidade. Episódios como o dedicado a Sydney confirmam que há potência nos pequenos gestos, nas hesitações silenciosas, nos diálogos que não precisam ser elevadas declarações existenciais para ganhar densidade dramática. A série reencontra sua vocação para explorar as fissuras emocionais de seus personagens, ainda que tropece ao tentar redistribuir isso de forma plenamente equilibrada.
O longo episódio ambientado no casamento de Tiff, ex-esposa de Richie, condensa esse espírito ambivalente. É sentimental, sim, mas também bem orquestrado, ainda que não alcance o impacto devastador de “Fishes”, seu antepassado espiritual. Falta-lhe o elemento da revelação — aquela sensação de que cada personagem, mesmo à beira do colapso, é levado a uma zona de verdade insuportável. Aqui, tudo é mais suave, mais pacificado, como se a série tivesse decidido preservar seus personagens do abismo para lhes oferecer, enfim, a possibilidade da cura. É um gesto bonito, mas menos ousado.
Carmy, por sua vez, permanece prisioneiro do mesmo dilema que o assombra há anos: qual versão de si é capaz de existir fora do caos? Sua repetição dramática, ainda que intencional, começa a perder vigor. É como observar um chef talentoso insistindo nos mesmos vícios de tempero — reconhece-se a habilidade, mas já não há surpresa no prato. Ainda assim, Carmy segue sendo um dos retratos mais honestos da masculinidade ansiosa contemporânea, e Jeremy Allen White encontra nuances mesmo nos momentos mais previsíveis de sua trajetória.
Para voltar a ser grande, a série precisa caminhar para um desfecho, não para mais uma reinvenção que adie a resolução.
Já Sydney emerge como o verdadeiro motor afetivo e profissional da temporada. Seu dilema — permanecer ou não no restaurante — poderia soar exausto após a temporada anterior, mas aqui ganha sutilezas novas, especialmente quando é confrontada com sua própria ambição, seu cansaço e o desejo de reconhecimento. Ela é, em muitos sentidos, o equilíbrio que Carmy nunca conseguirá alcançar.
A presença de Ebraheim e o desenvolvimento da “janela de sanduíches” funcionam como contraponto direto ao experimentalismo do restaurante principal. Ali, a série articula seu melhor comentário metatextual: a tensão entre o prato complexo e a comida simples, entre o risco criativo e a repetição confiável. Essa metáfora atravessa toda a temporada e diz mais sobre O Urso do que qualquer monólogo de Carmy poderia entregar.
Ao final, quando a narrativa sugere um possível caminho para o encerramento da série — com Sydney emergindo como herdeira natural do restaurante e Carmy talvez precisando, enfim, partir — fica claro que O Urso alcançou um ponto de maturidade. Mas maturidade, aqui, é sinônimo de limite. Para voltar a ser grande, a série precisa caminhar para um desfecho, não para mais uma reinvenção que adie a resolução.
A quarta temporada não é o prato mais elaborado da cozinha de Christopher Storer, mas é, definitivamente, o mais consciente de seus próprios ingredientes. E, às vezes, é isso que sustenta um grande restaurante: saber quando parar de inventar para finalmente servir o que realmente importa.
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