Quando a série documental Xuxa, O Documentário estreou na Globoplay, ficou claro ali que o especial, no qual predominava o tom extremamente chapa branca, funcionava como uma estratégia de marketing para “limpar” a imagem de Xuxa Meneghel e sedimentar as bases para o seu retorno para a Globo. Mais do que nos mostrar novas nuances sobre a apresentadora, a série serviu como uma grande e enfadonha homenagem a ela, sem qualquer contraposição. Interessante apenas para os fãs.
O fato é que o brilhantismo de sua carreira nos anos 1980 foi ofuscada, com o passar das décadas, pela constatação da toxicidade que esse “universo Xuxa” representava ao país. Estávamos ali diante de um belíssima mulher branca e loira, aos moldes de padrões nórdicos, que representava um mundo sem qualquer consonância com a realidade brasileira.
Milhares de crianças quiseram desfrutar também desse ambiente, mas pouquíssimas delas conseguiram. As “escolhidas” para serem assistentes de palco (ou seja, para habitar provisoriamente neste Olimpo particular) agora têm sua série do Globoplay com Para Sempre Paquitas. Daria para pensar aqui em uma espécie de spin-off da série original de Xuxa, pois a terapia coletiva das Paquitas não deixa de fazer parte de um grande mea culpa de Xuxa – que segue nos dizendo saber que configurou um mundo extremamente nocivo, mas ela não tinha culpa exatamente. E, como brincou um antigo diretor de TV, talvez esse documentário pudesse ser chamado de “Para sempre Marlene Mattos”.
As limitações de ‘Para Sempre Paquitas’
Tecnicamente, Para Sempre Paquitas se apresenta como uma série bem produzida e com um grande esforço de expor as ajudantes de palco de Xuxa com uma honestidade admirável. Elas são trazidas à cena individualmente e em grupo para falar, primeiro, da alegria que tiveram ao serem escolhidas para o grupo – eram todas “baixinhas” fãs do programa e sonhavam em estar do lado da deusa intocável da TV infantil brasileira.
Parece que estamos assistindo a uma sessão de constelação familiar – mas vale lembrar que isso envolve mais drama e charlatanice do que uma terapia efetiva, capaz de mudar alguma coisa.
A palavra “sonho”, inclusive, é constantemente repetida em tudo que concerne Xuxa. É a base de “Lua de Cristal”, música que talvez tenha sido o seu maior sucesso, e também trazida em vários momentos do Xou da Xuxa. A cada vez que proporcionava algo a uma criança, a apresentadora repetia uma frase: “sonho sonhado, sonho realizado”.
Obviamente, esse sonho veio associado a custos altíssimos. Entre eles, estavam a concorrência entre elas, a cobrança constante por ter um corpo perfeito, sem nunca poder engordar, e a instabilidade profissional – elas podiam ser demitidas a qualquer momento.
Para Sempre Paquitas (que é dirigido por Ana Paula Guimarães, ex-paquita conhecida como Catuxa e nome à frente de várias novelas da Globo), na maior parte do tempo, visa expor os abusos aos quais essas adolescentes foram submetidas. E, aparentemente, só havia uma única responsável por tudo isso: a diretora Marlene Mattos.
Diferente da série documental de Xuxa, aqui Marlene Mattos não aceita dar seu depoimento. Provavelmente sentiu-se em uma arapuca na qual já tinha caído antes. Mas sua ausência, assim como de outros personagens de visões mais plurais, acaba tornando a série problemática e, principalmente, redutora da realidade.
Soma-se a tudo isso a participação de Xuxa nos episódios. Xuxa, O Documentário já havia sido bastante criticado pelo “confronto” algo covarde entre Xuxa e Marlene, no qual a apresentadora metralha a diretora com acusações, como se fosse uma filha vomitando as mágoas do passado na mãe.
Ocorre, contudo, que Xuxa tem mais de 60 anos, e já era uma mulher adulta quando todos os abusos aconteceram – e, mais do que isso, tirou grandes vantagens da presença dominadora de Marlene Mattos, se é que realmente tudo ocorreu conforme é narrado. Há uma certa infantilização dos episódios, que também se reflete nas posturas das paquitas, elas mesmas se portando como filhas chateadas com a rejeição da mãe.
Faço coro ao engraçado post do apresentador Paulo Vieira na rede Bluesky: parece que estamos assistindo a uma sessão de constelação familiar – mas vale lembrar que isso envolve mais drama e charlatanice do que uma terapia efetiva, capaz de mudar alguma coisa.
No fim, não há exatamente novas nuances sobre todo esse fenômeno dos anos 80 e 90, mas mais do que já sabíamos, além da manutenção de um mundo encantado e excludente que, como já sabemos até aqui, fez mais mal do que bem para as crianças do Brasil.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.