Essa foi daquelas séries que demorou a ecoar no Brasil. Reservation Dogs é mais um acerto da lista infindável de produções da FX – esta, em parceria com a plataforma de streaming Hulu.
A magia do seriado está em todo conjunto: diretores, roteiristas e elenco composto por indígenas. Não se pode negar o poder da representatividade. Ela escorre por cada canto no seriado, ambientado e filmado em Oklahoma.
A delicadeza com que os temas são tratados em Reservation Dogs logo nos faz lembrar de outro projeto de enorme sucesso da emissora: Atlanta. Entretanto, não há intenção de ser uma versão indígena (ou nativo-americana) da série de Donald Glover. Porém, é inegável que há um diálogo entre os seriados, recortes por vezes menos interessantes à estrutura hollywoodiana.
A criação é da dupla Sterlin Harjo e Taika Waititi (What We Do in the Shadows) e acompanha um quarteto de adolescentes que vive em um pequeno vilarejo indígena, esquecido pelo restante do país.
Eles mesmos não querem mais fazer parte deste esquecimento, razão pela qual lutam para juntar economias e poderem partir dali para um “mundo real”, ainda que ele seja Califórnia.
De partida, sabemos que o amigo deles, Daniel, faleceu um ano antes e isso molda essa luta contra o esquecimento: não se quer (ou se aceita) esquecê-lo, enquanto, também, não se aceita estar naquele tórrido pedaço de terra, já esquecido.
O tipo de humor proposto pelo seriado é bem diferente, até mesmo se comparado ao executado neste momento na “Era de Ouro do Streaming“. Enquanto o riso, por vezes, se dá mais pelo desajuste, o encontro com uma sensação desconfortável dentro de nós, a trama desenrola um humor muito criativo, sensível, crítico e reflexivo. E carregado de referências.
Bear (D’Pharaoh Woon-A-Tai) é o líder do seu jovem grupo que tenta entender seu papel, enquanto é vigiado de perto por uma espécie de guia espiritual (Dallas Goldtooth), propositalmente caricato. O confronto proposto pelo próprio programa é que deixa toques muito sutis sobre ser um nativo-americano.
A química entre os jovens é a tônica dos oito episódios que compõem a primeira temporada.
A química entre os jovens é a tônica dos oito episódios que compõem a primeira temporada. Elora (Devery Jacobs), Cheese (Lane Factor) e Willie (Paulina Alexis) também vivem, cada um à sua maneira, uma busca interna de entendimento.
Ao passo que não querem aquela realidade em que passam os dias, tentam entender se essa é uma motivação deles ou resultado do ambiente que constantemente os oprime.
Os salgadinhos, as cervejas, os gêmeos que fazem hip-hop, nem mesmo a autoridade exercida por Big (o ótimo ator Zahn McClarnon) faz sentido nesse lugar. Esse confronto de ideias é tão sutil e explosivo que toma o espectador de assalto sem ele se dar conta.
Há uma corrente que exige de Bear e seus amigos que eles respeitem o legado e a história de seu povo. Precisam ser orgulhosos, ousados, cuidar de si e da sua comunidade. Ainda que internamente eles entendam esse papel, o contexto de negligência norte-americana para com as comunidades nativas os impulsiona a sair.
Nessa jornada nada involuntária de autoconhecimento, o grupo desenvolve sua própria estratégia de manutenção do legado – mesmo que isso envolva o roubo de produtos, por exemplo.
A gangue formada pelo quarteto é mais uma versão contemporânea de uma tribo, tecida de maneira a que as críticas à precarização da vida dos marginalizados norte-americanos soe compreensível.
Quando da eleição de Donald Trump, muito se falou sobre o esquecimento que certa “América” tem de “outra América”. Reservation Dogs capta essa energia com tamanha perspicácia que é difícil não sentir. O deboche é a tudo, menos a ser um indígena, é claro.
As tatuagens, o hip-hop, Tarantino, a internet, a ausência de perspectivas. Não se assuste, leitor, essas referências estão ali para não estereotipar quem é representado. Não é sua obrigação enxergá-las, elas serão facilmente percebidas.
Os adultos que os cercam tentam fazê-los compreender seu papel naquela sociedade, mesmo respeitando a intimidade deles. É um jogo, não duplo mas ambíguo, de defender o orgulho de ser um indígena, de fazê-los compreender a importância de ser orgulhoso do que se é, ao passo que não esconda os obstáculos dessa vivência.
Desse embate, desse choque, vamos sendo confrontados com nossas próprias concepções sobre os povos originários. E sem nada de panfletário. E, sim, em um seriado de humor.
Não ache estranhe se ao fim dos episódios de Reservation Dogs fique uma sensação levemente agridoce. Faz parte da singeleza do show, uma pequena pérola que o espectador brasileiro pode acompanhar no Star+.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.