Estando já inserido na cultura otaku faz um bom tempo, de vez em quando me vejo fazendo a pergunta: afinal, por que gosto tanto de animes? Não é a mesma coisa que dizer “eu gosto de filmes épicos” ou “eu gosto de comédias”, pois a palavra anime abrange vários gêneros, alguns bastante contraditórios entre si. No geral, identifico duas coisas que me fascinam em animes.
A primeira é o seu nível artístico, geralmente pouco estimado pela audiência e pelos críticos, mas que de vez em quando aparece algum Hayao Miyazaki ou Mamoru Oshii que os faz repensar seus conceitos. A segunda é seus roteiros: já nos anos 70, animes como A Rosa de Versalhes e Mobile Suit Gundam tinham roteiros muito mais sofisticados do que qualquer animação ocidental da mesma época.
Mas há um gênero dentro da animação japonesa que, não apenas a mim mas a muitos, causa certo afastamento, pelo simples fato de ser tão artístico e tão sofisticado que chega a ser quase inacessível: os chamados “animes existencialistas”. Aqui, a dramaturgia abre espaço para verdadeiros ensaios sobre nossa existência como humanos, questionando quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
São obras que precisam ser assistidas três ou quatro vezes ao longo de algumas semanas para que o espectador sinta-se satisfeito achando que deu um jeito de entender tudo que é possível delas. Um primeiro exemplo deste gênero foi o filme Akira (1988), mas ele só se tornou comum na segunda metade dos anos 90, com obras como Ghost in the Shell e Neon Genesis Evangelion em 1995 e, em 1998, com o assunto do texto de hoje: Serial Experiments Lain.
Não é infalível… Mas sua grandiosidade chega tão perto disso que mal importa mais.
Já havia citado esta série de ficção científica brevemente em meu texto sobre Haibane Renmei, daí me veio a ideia de escrever sobre ela hoje. Mas tentar explicar rapidamente como é a história de seus 13 episódios é uma tarefa praticamente impossível, e um tanto desnecessária a esta crítica (se é que isto é uma crítica): sua trama não apenas é extremamente profunda e cheia de sutilezas, como também toda vez que alguma coisa parece estar sendo construída em um episódio, ela é logo em seguida anulada, deixando a história com algumas pontas soltas, e nós espectadores com várias perguntas, às quais cabe à gente mesmo achar as respostas.
Como é típico em animes existencialistas, este é essencialmente um ensaio, no caso de Serial Experiments Lain, sobre as diferentes camadas que separam/aproximam o mundo real do virtual, mas de resto temos uma série com uma das premissas mais abertas a interpretações que já vi. Pra dar uma perspectiva, basicamente misture Matrix com O Sexto Sentido e você terá uma ideia do que estou dizendo. É definitivamente necessário assistir mais de uma vez para não perder nenhum ponto chave antes de tirar suas próprias conclusões sem medo de falar besteira.
O melhor jeito de entender como é Serial Experiments Lain continua sendo de fato assisti-la. Espera. Não, “assisti-la” não é uma boa palavra. “Assistir” Lain é como “assistir” uma viagem de alucinógenos. “Experimentá-la” é uma palavra melhor, pois ela sonda teus pensamentos e provoca coisas em tua mente que você nem sabia que eram possíveis. É quase como se a série estivesse assistindo você, e não o contrário.
Ok, “momento Black Mirror” à parte, esta é de fato uma série que abre os olhos do espectador para questões envolvendo comunicação computadorizada e a dicotomia da nossa identidade no mundo real x nossa identidade no mundo virtual que, 20 anos depois, estão mais atuais do que nunca. Como as melhores obras filosóficas por aí, não duvido que esta vá mudar a vida de muitos que a assistirem (mesmo que seja um pouquinho), como muitos já apontaram que vem fazendo desde que foi ao ar pela primeira vez.
Mas fora essa experiência quase transcendental, o que mais Lain tem a oferecer? A resposta: um estilo único e muito bem pensado. Percebe-se isso logo no começo, na abertura (que conta com uma canção pra lá de grudenta da banda de rock alternativo Bôa), seguida por estranhas “prévias” antes do título consistindo quase sempre da mesmíssima sequência acompanhada por uma fala aparentemente desconexa, mas que de alguma forma se relaciona com o tema do episódio – uma espécie de versão animada do Efeito Kuleshov. E uma vez começado o episódio, temos uma série com uma atmosfera sinistra em muito reminiscente aos trabalhos de David Lynch e Sam Mendes, surrealista e sombria, mas sem deixar de ter seus momentos divertidos, tudo isso reforçado por uma animação que explora ângulos antes pouco vistos em animes.
Lógico que Lain não é perfeito (qual série é?), com os primeiros quatro episódios sendo bem lentos e menos subjetivos que o restante da série, servindo quase inteiramente para o desenvolvimento inicial dos personagens. Mas não se convençam de que ela vai seguir eternamente neste mesmo ritmo: do episódio 5 em diante, Serial Experiments Lain fica muito mais envolvente. Continua não sendo infalível… Mas sua grandiosidade chega tão perto disso que mal importa mais.