Imagine Don Draper, agora mais grisalho, removendo discretamente um Rolex do criado-mudo do vizinho enquanto sorri com falsa modéstia. Em Seus Amigos e Vizinhos (Your Friends & Neighbors, no original), nova aposta da Apple TV+, Jon Hamm encarna Andrew “Coop” Cooper, um gestor de fundo de investimentos recém-desalojado do mercado e da própria casa, que encontra um propósito — ou algo que o mantenha minimamente em pé — no furto seletivo e silencioso dos objetos de valor da vizinhança endinheirada da qual ainda finge pertencer.
Na ficção recente, os bairros ricos têm se tornado cenário para pequenas tragédias bem polidas: casamentos falidos, infâncias negligenciadas, crimes sem vestígios. Seus Amigos e Vizinhos sabe disso e, talvez por essa razão, se move como quem já desconfia do próprio reflexo. Com tom sarcástico e olhar enviesado, a produção coloca o dedo em uma ferida silenciosa: o abismo entre a aparência da estabilidade e o colapso íntimo que ela muitas vezes encobre.
Criada por Jonathan Tropper (de Banshee e See), a série é um passeio elegante pelo esvaziamento moral da classe média alta suburbana estadunidense, embalado em mármore branco, iluminação tênue e sorrisos passivo-agressivos. Não se trata exatamente de algo novo: Big Little Lies já havia mostrado o potencial trágico dos bairros bem ajardinados, e The White Lotus levou a crítica de classe ao hedonismo turístico. Seus Amigos e Vizinhos prefere se manter entre os portões de condomínios fechados e fazer da dissimulação seu principal motor.
Com tom sarcástico e olhar enviesado, a produção coloca o dedo em uma ferida silenciosa: o abismo entre a aparência da estabilidade e o colapso íntimo que ela muitas vezes encobre.
Hamm — que desde Mad Men parecia preso ao papel do homem bonito e melancólico com passado embaçado — finalmente reencontra uma persona que lhe permite nuance. O Coop de Jon tem tudo o que se espera de um “vencedor” — e perde tudo num piscar de olhos. Demitido do emprego e afastado pela ex-mulher, ele se agarra à única coisa que parece ainda dar sentido à sua existência: manter as aparências.
Seus furtos soam como um ritual estranho entre cleptomania estética e redenção pessoal. São relógios suíços, obras de arte e garrafas raras de bebidas que vão compondo um espólio de ilusões, escondido num depósito qualquer. Coop não é apenas um ladrão de bugigangas finas; é um homem em permanente performance, tentando convencer a si mesmo e aos outros de que ainda merece estar ali, entre croissants artesanais e vinhos de safra. Seu charme é envolvente, e seu desespero palpável.
Ao lado dele, Amanda Peet (como Mel, a ex-mulher que está mais cansada do que magoada) e Olivia Munn (como Samantha, a vizinha que enxerga através da fachada) oferecem presenças que ajudam a balizar o cinismo masculino com doses de observação mais aguda e menos autocentrada. Ainda assim, a estrela do espetáculo é Jon Hamm — e a série parece saber disso, girando constantemente ao redor de seus silêncios expressivos e de sua capacidade de fazer com que até um olhar para uma fechadura eletrônica ganhe ambiguidade dramática. Contido e magnético, o ator constrói um personagem que não sabemos se odiamos ou apenas o reconhecemos em nós mesmos.
Seus Amigos e Vizinhos combina a leveza amarga das boas comédias com uma crítica social que, se não é inédita, é aguda. Está tudo ali: o fetiche por status, a masculinidade em crise, o império dos simulacros que transforma pessoas em vitrines ambulantes. Há algo profundamente contemporâneo nesse desejo de preservar a fachada a qualquer custo.
O problema — há sempre um problema — é que a série às vezes sabota a própria inteligência. Em seus melhores momentos, parece uma comédia sombria ao estilo de Edith Wharton adaptada para os tempos do Apple Watch. Em seus piores, tropeça na tentação do niilismo com verniz: quando todos os personagens são moralmente dúbios, os diálogos se tornam um exercício de cansaço, e a trama desliza para um território onde só resta ao espectador admirar o bom gosto do mobiliário.
Mesmo assim, Seus Amigos e Vizinhos merece sua atenção. Não apenas pelo retorno inspirado de Jon Hamm ao que sabe fazer de melhor — o charme com rachaduras —, mas também por capturar, com precisão inquietante, a sensação de que vivemos todos sob constante avaliação: da empresa, dos vizinhos, dos algoritmos e, o mais implacável de todos, de nós mesmos.
Ao final, talvez seja essa a verdadeira ousadia da série: mostrar que, às vezes, o pior de nós emerge não nas grandes transgressões, mas na manutenção cuidadosa de uma aparência que já não nos abriga.
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