Histórias de abuso entre mãe e filha/filho não são novidades na dramaturgia. Só para citar duas séries recentes, temos Bates Motel e o tóxico relacionamento entre Norma e Norman, e Objetos Cortantes, em que toda tensão e problemática gira em torno da mãe de Camile e Amma. The Act, minissérie original da plataforma Hulu, também aborda esta complexa dinâmica sobre relacionamento abusivo parental, mas a diferença é que ela é baseada numa das histórias reais mais absurdas já vistas nos últimos tempos. A nossa grávida de Taubaté perde feio para a grande encenação de Gypsy e Dee Dee.
Se você não sabe do que eu estou falando, vale a pena ver a minissérie sem nenhum detalhe, mas a produção não se preocupa muito em esconder o que aconteceu. Portanto, aqui vai um breve resumo: em 2016, uma reportagem do BuzzFeed viralizou no mundo inteiro ao contar a história de Dee Dee e Gypsy Rose Blancharde, mãe e filha que ganharam a atenção da mídia ao expor o drama que viviam.
Dee Dee vivia integralmente para Gypsy, sua filha que, desde pequena, apresentava doenças gravíssimas. “Quem perguntasse sobre o diagnóstico de Gypsy ouvia como resposta uma longa lista de problemas de saúde: anomalias cromossômicas, distrofia muscular, epilepsia, asma severa, apneia do sono, problemas na vista. Sempre fora assim, dizia Dee Dee, desde a época em que Gypsy era bebê. Ela passou um tempo na UTI neonatal. Teve leucemia quando era pequena”, revela um trecho do artigo.
Com isso, as duas ganharam doações do país todos e participavam de inúmeros programas de TV. O problema é que era tudo mentira. Dee Dee enganava não somente as pessoas, mas sua própria filha, que de fato acreditava estar doente. Conforme Gypsy vai crescendo, ela vai em busca de independência para viver um amor proibido e decide orquestrar um assassinato. A história já foi contada em 2017, em um documentário da HBO, Mommy Dead and Dearest, mas a proposta de The Act é vermos o cotidiano de mãe e filha e o que acontecia por trás das paredes da casa onde elas viviam.
The Act é um thriller clássico com ares de terror.
Seria, de fato, um desperdício imenso não contar tudo isso por meio da teledramaturgia. É claro que os fatos já são chocantes, o que deixa a história naturalmente interessante, mas tudo soaria péssimo sem uma atuação acima da média. Por isso, a plataforma Hulu chamou Patricia Arquette (Escape at Dannemora, Medium) e Joey King (A Barraca do Beijo) para interpretarem duas personagens difíceis de serem feitas sem cair no caricato. O resultado é um deleite. Tanto King quanto Arquette conseguem entregar um trabalho sóbrio, calculado e sem afetação. Os momentos de explosão existem, mas aparecem pontualmente, tudo para que, no final, nós recebamos o impacto necessário. O destaque de King é que, embora entendamos que claramente ela é uma vítima, sua personagem nunca soa unilateral, podendo às vezes ser tão psicótica quanto sua mãe. Afinal, ela é seu único modelo de referência para a vida.
Ainda assim, é Patricia Arquette quem se entrega de corpo e alma a uma personagem cheia de nuances. Seu tom de voz afável e doce, em contraste com um olhar doente e assustador, é algo que facilmente lhe garantirá indicações em premiações. O trabalho da atriz é tão fantástico que é possível sentir empatia e compaixão pela personagem, mesmo quando ela faz coisas terríveis e incute na filha insegurança e medo. Mesmo nesses momentos, Arquette soa como uma mãe preocupada e que carrega um fardo sozinha, injustiçada pelo mundo.
Há alguns problemas no roteiro, claro. A minissérie vai bem em quase todos os episódios, mas há alguns furos, diálogos expositivos e histórias de fundo que não funcionam muito bem, como os vizinhos de Gypsy e Dee Dee. Em certo momento também percebemos que o roteiro está criando uma barriga para esticar a história, que facilmente poderia ter seis episódios e não oito. Nada disso, entretanto, faz a história perder o impacto.
Sufocante, The Act é um thriller clássico com ares de terror, ao mesmo tempo em que soa como uma fábula, um conto de fadas sombrio. A cada episódio vamos nos envolvendo, espectadores passivos de uma história que, vista agora, parece absurda demais para que ninguém tenha se dado conta. Ao nos lembrar que a realidade sempre será muito mais perturbadora do que a ficção, The Act é um retrato de abuso psicológico sobre até onde um ser humano pode aguentar. E afinal, quem pode julgar Gypsy?