Após muitos anos juntos, assoberbados pela rotina familiar, um casal é confrontado com uma dura realidade. Quando menos se espera, e sem que haja uma aparente intencionalidade, um terceiro elemento entra em órbita e carrega consigo o que até então era indizível: há vida (e desejo) fora do casamento. Um caso extraconjugal se prenuncia, trazendo junto um rastro de mudanças – devastadoras em alguns aspectos, renovadoras em outros. A história de traição, afinal, já foi contada inúmeras vezes na literatura e no cinema, sob diversas óticas e diferentes desdobramentos.
A série The Affair, do canal Showtime, oxigena as narrativas de traição com uma perspectiva bastante interessante. Qual é, afinal, a realidade acerca de um romance, sendo que apenas o acessamos por meio de nossa subjetividade e dos filtros estabelecidos pela memória? É possível assegurar uma verdade absoluta sobre o que de fato ocorreu? A estrutura dos episódios da primeira temporada de The Affair é inovadora, pois se polariza em dois pontos de vista: os olhares dos dois adúlteros, que observam os fatos decorridos a partir de seus diferentes backgrounds, definidos por suas trajetórias e suas feridas profundas. É quase como se a história fosse narrada por meio de duas câmeras, posicionadas uma em frente à outra, e nós, o público, fôssemos convidados a “caçar” as intersecções entre as visões de Noah e Allison, para assim chegarmos às nossas conclusões.
Ainda que o tema do romance extraconjugal seja um tanto batido, a riqueza de The Affair se encontra justamente nas sutilezas com que os personagens e suas tramas são constituídos. Noah Solloway (Dominique West) é um professor de escola pública, pai de quatro filhos com Helen (Maura Tierney, de O Mentiroso), a herdeira mezzo progressista, mezzo conservadora do escritor de best-sellers Bruce Butler. Delineado como um homem sensível, ligado às artes, Noah nutre o desejo de ele mesmo se tornar um grande escritor, mas só conseguiu finalizar um livro em dez anos, sem grande repercussão. Sem conquistar sucesso profissional, Noah é gradativamente desvirilizado pelos sogros, que sustentam a sua família, e pela mulher, que, ainda que busque demonstrar o contrário, parece (na visão dele) não acreditar na sua potencialidade. A trama do professor discute ainda as origens da inspiração intelectual e a necessidade das “musas” e de uma vida conturbada para que um artista possa criar uma obra perene.
Durante as férias, quando passam uma temporada na mansão dos Butler, o destino de Noah e de sua família se cruza com Allison Bailey (Ruth Wilson, vencedora do Globo de Ouro na categoria de melhor atriz em série de TV – Drama por este personagem), uma garçonete de ar desolado que acaba salvando a filha mais nova de Noah e Helen quando ela engasga em seu restaurante. Brilhantemente construída enquanto personagem, Allison é uma mulher que se recupera de uma depressão após vivenciar uma das tragédias mais intransponíveis na existência de alguém: a perda do filho pequeno, em um episódio cuja falta de esclarecimento faz parte, inclusive, da experiência proporcionada pela narrativa. Allison é marcada por uma culpa que se arrasta e a torna autodestrutiva, abrindo brechas, então, à ruína de seu casamento com Cole (Joshua Jackson, de Fringe) e à aproximação com Noah.
Qual é, afinal, a realidade acerca de um romance, sendo que apenas o acessamos por meio de nossa subjetividade e dos filtros estabelecidos pela memória? É possível assegurar uma verdade absoluta sobre o que de fato ocorreu?
Profundamente humana, a trama, em si, já tornaria The Affair, vencedora do Globo de Ouro de melhor série de TV – Drama, uma boa atração televisiva. Mas, conforme já dito, seu formato inova por ir além disto, por possibilitar a quem a assiste esta espécie de turismo na memória, refletindo sobre as contingências da verdade e a chance de reconstitui-la por meio dos diferentes relatos. No ponto de vista de Noah, ele se vê como intempestivo e esmagado pelas exigências familiares, um animal domesticado, enquanto Allison é sedutora e profunda, interessante na sua obscuridade e nas feridas causadas pela perda, diferente de sua esposa, que é plana; na visão de Allison, que é mais delicada (numa sutil pontuação sobre a sensibilidade feminina), ela se vê devastada, constituída pelos destroços que restaram da tragédia, enquanto Noah parece mais seguro de si, viril. Os ângulos se distanciam pela própria memória do que de fato aconteceu (por exemplo, quem tomou a iniciativa da sedução) e pelos detalhes (na visão de Noah, em muitos momentos, Allison usa vestidos e leva o cabelo solto, mais sensual, enquanto na própria memória, veste esportivamente, mais contida).
Há ainda uma trama, menos interessante que o conflito amoroso, de um assassinato que vai sendo desvendado ao longo dos episódios. A narrativa, nestes momentos, opera por mudanças temporais que adiantam e retornam a história ao momento do desenrolar do caso, em um movimento não-linear. Mas, sobretudo, esta é uma história sobre o peso da culpa e a autocondenação de quem não consegue se perdoar, sobre vida e sobre o renascimento que surge a partir de certas mortes, literais e metafóricas. Somos convidados a juntar as peças e a ponderar sobre os limites das nossas próprias recordações e sobre os fragmentos de realidade que elas conseguem carregar.
Em suma, o que The Affair parece dizer é: ninguém sabe o que se passa na relação de um casal, nem mesmo seus membros. Por consequência, qualquer conclusão (e julgamento) acerca de uma história é sempre apressada e leviana. Uma série demasiadamente humana – por isso mesmo, imperdível.
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