Adaptações de livros feitas para a televisão e para o cinema são sempre grandes desafios para os seus produtores e geram muitas expectativas no público. Por um lado, há as versões que arrancaram fortes elogios da crítica e da audiência (como The Handmaid’s Tale, série baseada no livro de Margaret Atwood), mesmo quando a releitura se afasta da obra original (caso do clássico cinematográfico O iluminado, de Stephen King, cuja história é um tanto diferente do livro de Stephen King). Por outro, por vezes as adaptações – mesmo quando bem-feitas – causam certos incômodos, pela impressão de que a versão poderia ter sido melhor planejada.
A minissérie The Sinner, penso, causa um certo desconforto do segundo tipo. Trata-se de uma adaptação para a televisão feita de obra de mesmo nome, da escritora alemã Petra Hammesfahr. Para começar, façamos justiça: a minissérie policial, produzida e protagonizada por Jessica Biel, é bastante interessante e capaz de prender o espectador até os últimos capítulos. A premissa é original e a organização da trama de mistério inova os formatos típicos do gênero. No entanto, ela deixa um certo gosto de que há muito da trama que não pode ser explorado na série – justamente por ser uma série e não um livro.
Mas voltando à premissa da série, ela é instigante e quebra o que normalmente se espera de um romance policial. Como quase todo policial, The Sinner gira em torno da investigação de um assassinato. No entanto, diferente da maior parte das obras desse gênero, nós adentramos na história sabendo, com absoluta certeza, quem matou – mas não sabemos (nem sabe a personagem) quais as motivações para ter matado. No primeiro episódio, vemos a dona de casa Cora Tannetti (Jessica Biel) descansando em um balneário, com o marido (Christopher Abbott, de Girls) e o filho pequeno. Até que, inesperadamente, ela comete um assassinato violento – mas nem ela, nem nós, do lado de cá da tela, sabemos o porquê.
Presa logo em seguida, a trama se desenrola em torno da gradual revelação deste mistério: o que haveria no passado de Cora Tannetti, enterrado em seu inconsciente, que a fez matar alguém de modo tão brutal? Cada episódio nos traz novas pistas e personagens que são usados para costurar uma trama em que diversos elementos – como traumas de infância, religiosidade cega, tabus sexuais, conservadorismo exacerbado na criação dos filhos, envolvimento com drogas e outras questões – vão se delineando aos poucos na complexa mente de Cora.
Ainda que The Sinner gire evidentemente em torno na personagem de Jessica Biel (cujo semblante sério e tenso torna o drama de Cora bastante crível), outros indivíduos são trazidos e adquirem relevância na história. Dentre eles, destacam-se Christopher Abbott, como Mason Tannetti, o marido desavisado de Cora, tão no escuro quanto nós, espectadores; mas, especialmente, Phoebe (Nadia Alexander), a irmã doente de Cora, cuja interpretação é responsável por assegurar boa parte do clima lúgubre da série.
Phoebe é a personagem mais complexa em The Sinner: uma menina com sérios problemas de saúde que cresceu com todas as restrições possíveis, e desenvolve uma relação complexa, que vai muito além do amor e do ódio, com a irmã Cora, que pode desfrutar da vida que Phoebe desejava, mas não pode ter.
Como quase todo policial, The Sinner gira em torno da investigação de um assassinato. No entanto, nós adentramos na história sabendo, com absoluta certeza, quem matou – mas não sabemos quais as motivações para ter matado.
Mas talvez o outro protagonista de The Sinner seja o detetive Harry Ambrose (interpretado com muita competência por Bill Pullman), o único membro da polícia que intui que há mais coisa escondida no assassinato cometido por Cora. Desajustado e repleto de esquisitices, o personagem parece prestar reverência ao detetive Dale Copper, de Twin Peaks – ainda que sua história tenha mais nuances sexuais que a do detetive de Kyle McLachlan. Se Dale Cooper conversava com gravadores eletrônicos e tinha uma obsessão por tortas, as excentricidades de Harry Ambrose tem mais a ver com sua alienação no casamento e suas preferências sexuais pouco ortodoxas.
Mas aí, creio, revela-se a fragilidade da adaptação de The Sinner: a impressão é que há muito mais desenvolvimento nas histórias dos personagens do que a série consegue nos revelar. A construção do personagem do detetive Ambrose é o maior exemplo: suas particularidades não são resolvidas na narrativa, ficam como fios soltos esperando por uma amarra. As taras sexuais de Ambrose não parecem se conectar em nada com a história de Cora, e a esquisitice do personagem parece algo jogada na trama. A impressão que dá é que sua história deve estar melhor desenvolvida no livro original. O mesmo se pode dizer de outros elementos do roteiro, como toda a questão que envolve um clube com sócios bastante seletos, e do passado que envolve Mason.
Ainda assim, The Sinner proporciona um bom entretenimento e traz elementos dramáticos – que discutem, por exemplo, a extensão dos traumas adquiridos na infância e sua ligação com a constituição da memória do passado – que oxigenam a trama e nos prendem o fôlego na expectativa da solução em um mistério. No fim das contas, é para isso que servem os romances – e as séries – policiais.