Qualquer brasileiro que tenha crescido fora do eixo RJ-SP provavelmente vai ter em mente um certo estereótipo da Cidade Maravilhosa como uma espécie de terra sem lei, na qual a diversão proporcionada pela metrópole se equivale à tensão do clima de insegurança. Querendo ou não, a minissérie documental Vale o Escrito, da Globoplay, parece se encaixar perfeitamente como um reforço deste imaginário.
A impressionante série faz um retrato do popularíssimo jogo do bicho, uma loteria informal que foi criada em 1892 e que estendeu seus ramos para a construção de um império que envolve famílias de contraventores com negócios milionários, todos na ilegalidade. Entram aqui também máquinas de caça níquel, milícias, além do lado tido como positivo, como o investimento no Carnaval carioca e em suas comunidades.
Emprestando algo do imaginário ficcional, toda a estrutura do jogo do bicho faz lembrar das tramas tensas de famílias mafiosas que conhecemos de filmes como O Poderoso Chefão e séries como Sopranos. Não por acaso, são atrações cultuadas pelos próprios personagens. Mas aqui, claro, a máfia aparece com a marca tipicamente carioca, temperada por muito samba, malandragem e idas constantes na academia.
Produzida em sete episódios, Vale o Escrito é um registro fenomenal de entrevistas com membros novos das maiores famílias de contraventores do Rio de Janeiro. Gente que está envolvida na suspeita de múltiplos assassinatos e que já tiveram muitos parentes mortos em uma guerra pelo poder do jogo do bicho, envolvendo a família Andrade (herdeiros de Castor de Andrade) e Garcia (descendentes de Miro Garcia e seu filho Maninho, assassinado em 2004).
É realmente muito surpreendente ver que todas aquelas pessoas (como as irmãs Shanna e Tamara Garcia, e um antigo agregado da família, Bernardo Bello, tido hoje como grande chefão do esquema), que por tantos anos apareceram apenas no noticiário de forma vicária, sem falar, envolvidos em notícias da pauta policial, agora se sentam na frente de uma câmera da Globo e detalham publicamente as suas relações conturbadas.
Seria interessante que, em algum momento, a equipe envolvida no trabalho – capitaneada pelos diretores Fellipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti – viesse a público para contar como foi todo o processo de negociação para que esses personagens topassem dar depoimentos. Seria, no mínimo, pedagógico para as próximas gerações de jornalistas.
A espetacularização do jogo do bicho
Dito isto, creio que vale a pena destacar que toda essa história (muito bem contada, por sinal, a partir de uma belíssima concepção artística da série, que cria mapas para situar o espectador nesta complexa trama) acaba promovendo um certo ônus.
Por se relacionar intensamente com o nosso imaginário estereotipado sobre o Rio de Janeiro, talvez se possa dizer que Vale o Escrito possa produzindo um efeito negativo, que é o de reiterar essa espécie de “culto” em torno desses contraventores. Explico: é realmente muito fascinante ouvir todos os depoimentos e imaginar o Rio de Janeiro como algo próximo a um Velho Oeste brasileiro com regras próprias.
O que se conta ao longo dos sete episódios de Vale o Escrito é gravíssimo. São pessoas que relatam abertamente crimes ou acusam outros de cometê-los, enquanto relatam viver a partir de subsídios vindos de práticas ilegais.
Uma crítica relativamente semelhante se deu com o lançamento do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, em 2002. Esteticamente perfeita, o longa impressionou espectadores no mundo inteiro, mas também fortaleceu uma ideia de uma certa fetichização deste Rio de Janeiro tomado pela violência, diminuindo o impacto sobre o que tudo isso significa na realidade de quem mora na cidade.
O que se conta ao longo dos sete episódios de Vale o Escrito é gravíssimo. São pessoas que relatam abertamente crimes ou acusam outros de cometê-los, enquanto relatam viver a partir de subsídios vindos de práticas ilegais. Isso quando não se fala abertamente de assassinatos ou de passados terríveis.
O episódio mais chocante é um que desdobra a ligação do jogo do bicho com o miliciano Adriano da Nóbrega, que se tornou conhecido nos noticiários por suas ligações com a família Bolsonaro e com a possível conexão com o assassinato da vereadora Marielle Franco. Todo o episódio é muito tenso e narra a sua carreira no “escritório do crime” até que ele morre, supostamente em um confronto com a polícia, enquanto estava escondido no interior da Bahia.
Sua história é compartilhada, de forma muito envolvente, por sua viúva, Juliana Lotufo. Ocorre que toda a narrativa tecida por ela diz respeito a uma história de amor, com grandes toques de aventura e emoção. É até fácil de se esquecer que ela ali fala daquele que talvez tenha sido o maior assassino profissional brasileiro das últimas décadas.
Em certo momento, Juliana menciona a vez em que eles fumaram maconha, e Adriano, alterado, começou a rir e dizer que queria até pedir perdão aos tantos maconheiros em quem ele bateu durante sua carreira de policial. Isso é contado quase de forma doce, anedótica, apagando todo o lado sombrio e criminoso que cobria o sujeito.
Por isso, ainda que Vale o Escrito seja uma excelente série, ela também pode nos servir para suscitar uma reflexão sobre qual é a função, afinal, de tantos relatos sobre crimes, os quais parecem hipnotizar o público de uma forma que deveria nos escandalizar muito mais.
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