Já comentei algumas vezes nessa coluna sobre aquilo que chamo de uma pedagogia do mundo corporativo que hoje é vigente na vida social. Em suma, trata-se de uma visão específica de que o funcionamento do universo dos negócios se dá por meio do esforço sem limites, pela submissão às autoridades dentro de cada campo (o que significa ouvir alguns desaforos de pessoas mais experientes) e pela obediência às regras selvagens do capitalismo. E se algo existe no mundo social, certamente será refletido nos programas de televisão.
Não são poucos os programas que tematizam o mundo corporativo e tentam reproduzir suas lógicas na TV, como O Aprendiz e mesmo MasterChef Brasil. Mas talvez nenhum deles seja tão explícito como Shark Tank Brasil – Negociando com Tubarões, formato americano que foi adaptado no Brasil para o Canal Sony, e que atualmente é também transmitido na Band.
Ousado na sua concepção, o programa nada mais é que uma série de reuniões de negócios entre empreendedores e possíveis financiadores de suas propostas. A imagem, desde o nome, é bem clara: os valentes empreendedores topam “mergulhar” num tanque de “tubarões” – empresários de grande sucesso no Brasil, donos de gigantes como Polishop, Chilli Beans e China in Box –, que decidirão, na frente das câmeras, se investirão seu dinheiro em suas propostas (a edição deixa bem claro que o dinheiro aplicado é do próprio megaempresário, e não da produção de Shark Tank).
Tem algo de irresistível em um formato como esse. Primeiramente, há a atração nata do empreendedorismo, da sensação de ver um negócio sendo construído a partir apenas da criatividade e da vontade. A ideia de ser empreendedor tem como fundo a impressão de que o sucesso está ao alcance de todos, na base do do it yourself – é outro que está empreendendo, mas poderia ser eu mesmo em seu lugar (é essa sedução que talvez explique a longevidade de um programa como Pequenas empresas, grandes negócios, divertido mesmo para quem não trabalha no ramo).
Por outro lado, o empreendedorismo carrega consigo a ideia do sonho, da narrativa de superação (se eu realmente quiser alguma coisa, eu alcanço), que é absolutamente fascinante para a televisão. De quebra, o programa promete uma espécie de consultoria para o público sobre como obter sucesso nos negócios.
Nesse sentido, Shark Tank Brasil tem como possível qualidade o fato de trazer um tom de realidade a essa concepção. O discurso subjacente ao programa é: sim, você pode empreender se tiver muita vontade, mas não esqueça que o mundo lá fora é uma selva. O mundo corporativo não é para os fracos. Sendo assim, a experiência do programa é emprestar um gosto de “vida real” ao apresentar as barreiras pelas quais todos os empresários, por mais entusiasmados e motivados que sejam, precisarão enfrentar para conseguir algum sucesso no universo capitalista.
O discurso subjacente ao programa é: sim, você pode empreender se tiver muita vontade, mas não esqueça que o mundo lá fora é uma selva. O mundo corporativo não é para os fracos.
Isso é feito de forma bastante simples, de fato. Em uma ampla sala vazia, cinco empresários assistem a uma apresentação de um incauto negociante e aplicam uma saraivada de perguntas que testarão o seu preparo. O tom é didático: cada vez que algum termo técnico da administração é mencionado, aparece uma legenda na tela que a traduz para o leigo. Há outros elementos que reforçam o discurso “selva de pedra” acerca deste universo, como a repetição de um bordão. No mesmo estilo do “Você está demitido” de O Aprendiz, cada tubarão fala “Tô fora” quando decide não investir no negócio apresentado.
Um trunfo do programa é justamente não focar em demasiado nos sharks, os investidores nos negócios que se candidatam a esse escrutínio público. Cada um deles tem uma especificidade na forma em que se apresenta e naquilo que entendem (talvez, não por acaso, sentam-se em poltronas diferentes). Em comum, dividem o pulso firme na hora de falar com os empreendedores: fazem perguntas que quase sempre desmontam empresários confiantes. Fica subentendido que são estrelas do mundo dos negócios – não raro, os candidatos pedem para tirar uma foto com algum deles.
Se a frieza é o tom dos tubarões, por outro lado, a TV é o espaço da emoção, da expressão do sentimento, e mesmo um programa como Shark Tank Brasil não pode escapar disso. A narrativa trazida por todos os empreendedores tende a ser da criatividade e, quase sempre, da superação, outro elemento irresistível à televisão. Mesmo nesse universo em que o sangue frio é a regra, e é entendido como elemento central para a obtenção dos resultados, o tom melodramático não é deixado de lado.
No primeiro episódio da segunda temporada de Shark Tank Brasil, por exemplo, um dos negócios apresentados foi a de um ex-morador de rua que criou uma marca de produtos para cabelos. Não por acaso, este case foi editado como o último a ser exibido no episódio, configurando o clímax. A narrativa amarrada pela fala dos investidores voltou-se mais à história do empreendedor do que ao seu próprio negócio.
Enquanto ele a contava, todos os sharks choraram copiosamente e declararam ser seus fãs. Mas mesmo isso não afetou sua visão dos negócios: apenas João Apolinário, dono da Polishop, topou investir simbólicos 5 reais no comércio do sujeito. Para o sucesso do programa de TV, os tubarões também têm coração – mas apenas na medida que isso não interfere no bolso, é claro.