Há algumas semanas, assisti a uma reportagem no canal GloboNews que tratava de uma pesquisa, realizada pela Fecomércio, cujo intuito era mapear os hábitos culturais dos brasileiros (assista aqui). A “novidade” abordada pela reportagem era a constatação de uma queda expressiva na leitura: segundo a pesquisa, 7 em cada 10 brasileiros não chegaram a ler um livro durante todo o ano de 2014.
Porém, o que mais me chamou a atenção não foi este dado – de certa forma previsível, em épocas de estímulos constantes das informações via internet e da onipresença de smartphones -, mas alguns detalhes da produção desta pesquisa. Para fazer este mapeamento, a Fecomércio estabeleceu seis grandes categorias que definiriam cultura (eram elas: leitura, cinema, show, teatro, dança e exposição de arte). Mas o dado mais curioso, a meu ver, é este: ao serem perguntados sobre o que fazem ao invés de realizarem atividades culturais, as respostas dos entrevistados foram, em ordem decrescente, assistir à televisão (80%), ir a cultos e igrejas e fazer um churrasco com os amigos (cerca de 20%).
Interessante observar o quanto este critério, que separa a televisão dos meios culturais mais “elevados”, é entendido como óbvio pelo público, já tão acostumado a compreender a TV como um veículo menor. A própria repórter que entrevista o representante da Fecomércio é cúmplice da piadinha que ele faz (“Adivinha?”, ele responde ironicamente, ao ser perguntado sobre qual a opção mais recorrente por quem não consome cultura). Creio ser inegável que, para a maioria de nós, ver televisão significa fazer nada de útil, despender de um tempo que seria melhor investido fazendo outra coisa.
Creio ser inegável que, para a maioria de nós, ver televisão significa fazer nada de útil, despender de um tempo que seria melhor investido fazer outra coisa.
É uma constatação relevante e tanto num país em que a televisão é bastante forte, e o que entendemos por cultura ou por nossa memória coletiva (na maravilhosa frase da autora Clarissa Pinkola Estés, a cultura é a família de todas as famílias) se passa pela mediação feita pela TV. Independente da qualidade do que é veiculado, creio ser preciso encarar o meio televisão de forma séria e, ao menos em tentativa, tentar vê-la em pé de igualdade em outros veículos considerados mais “nobres”.
Que fique claro: pensar a televisão de forma séria não é um sinônimo de fechar os olhos para suas limitações. Parece-me curioso observar que o próprio veículo tem uma certa tendência a perpetuar esta visão underdog de si mesma e – o que é pior – manter certas discussões sempre no nível mais raso possível. Ilustro esta visão com um exemplo, veiculado no telejornal Bom Dia Brasil na semana passada. Falo de uma reportagem que encerra a edição do jornal na sexta-feira (os familiarizados com a linguagem dos telejornais certamente já notaram um certo “hábito” deste formato de sempre encerrar suas edições com matérias edificantes, otimistas, como uma forma de tirar o gosto amargo de uma agenda cheia de tragédias e más notícias).
A reportagem (veja aqui) – que é anunciada pela apresentadora Ana Paula Araújo como a “história mais fofa” – fala de uma menina de 7 anos, no sertão do Alagoas, que realizou um “sonho de gente grande de compartilhar conhecimento”: o de criar uma biblioteca na garagem dos avós. Por meio de uma mobilização feita pelas redes sociais, empresários da região se envolveram em uma campanha de arrecadação de livros para a biblioteca da menina Mel. Como a própria reportagem mostra, por meio de imagens e do texto narrado, muitos doaram livros que estavam “largados na estante”. A câmera enfoca os livros arrecadados – muitos deles são livros didáticos encostados, provavelmente bem desatualizados. Quem trabalha com arrecadação de livros pode confirmar que, na maioria das vezes, as obras doadas são os que as pessoas não querem mais, e não os que consideram bons – mesmo que não estejam sendo lidos.
Apenas para esclarecer: não há aqui crítica alguma sobre a iniciativa da menina Mel, altamente louvável. O que traz certo incômodo é a tendência fácil de manter a discussão sobre cultura ao nível raso do senso comum, sem qualquer esforço de problematização. Ou seja, conforme os discursos normalmente proferidos nos programas televisivos, todos compartilhamos noções muito claras e sólidas sobre o que é estar do lado do bem ou do mal, ser ético ou ser injusto, ser correto ou ser alguém condenável. Mesmo para a televisão, parece estar nítido: ler é bom, não importa qual seja o conteúdo do livro e, certamente, é preferível a assistir à TV.
Para os que justificam isto na própria abrangência do veículo – como a televisão fala com um público muito maior do que a literatura ou o teatro, é inevitável que sua comunicação seja mais rasa e que isto inviabilize um trabalho mais reflexivo, provocativo – sugiro uma investigação um pouco mais atenta sobre as boas iniciativas. Só para continuar na esfera do jornalismo, destacaria o sofisticado trabalho do repórter Marcelo Canellas, habituado a tratar de temas áridos sem cair em recursos óbvios, utilizando sempre uma linguagem que não menospreza o espectador. Mas isto já é tema para outra discussão.
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