Lançada em 2015, a série The Affair, do canal Showtime, foi uma surpresa no rol das narrativas dramáticas de televisão ao propor contar uma história já batida (um caso de traição entre dois casais em casamentos em crise) por meio de uma estrutura inovadora: os mesmos acontecimentos são sempre relatados sob as visões de dois personagens, trazendo lampejos bastante interessantes sobre a questão de memória. Mais do que isso, The Affair provoca o espectador a refletir sobre se temos, de fato, alguma certeza sobre o que acontece dentro dos relacionamentos amorosos – mesmo quando estamos dentro deles. A história de Allison (Ruth Wilson) e Noah (Dominique West) nos provoca o tempo todo a pensar sobre julgamentos, sobre as razões para atrações entre os pares, e sobre o quanto do desejo (e rejeição) pelo outro é inspirado por nossas próprias lacunas.
É uma trama riquíssima, portanto. Ao longo das duas primeiras temporadas, a série nos levou ao encontro e à derrocada do amor não apenas entre Allison e Noah, mas com os seus respectivos cônjuges, Cole e Helen, vividos pelos muito competentes Joshua Jackson e Maura Tierney. É difícil pensar em The Affair como um enredo centralizado apenas em seus protagonistas, uma vez que estes e vários outros personagens da família de Allison e Noah são desenvolvidos com relativo destaque. Trata-se, por fim, de uma espécie de saga familiar – é bastante comovente observar o quanto dos problemas amorosos entre os dois casais respingam na relação em que mantêm com os filhos dessas relações.
The Affair foi uma surpresa no rol das narrativas dramáticas de televisão ao propor contar uma história já batida por meio de uma estrutura inovadora: os mesmos acontecimentos são sempre relatados sob as visões de dois personagens, trazendo lampejos bastante interessantes sobre a questão de memória.
Já na segunda temporada da série, os desencontros amorosos se desenvolveram de tal forma que novos pares foram trazidos à cena. Cole encontrou novamente alguma possibilidade de amor em Luisa (vivida pela atriz colombiana Catalina Sandino Moreno, de Maria Cheia de Graça), e Helen tentou superar a rejeição de Noah dando uma chance ao amigo dele, Max (Josh Stamberg), e finalmente se acertando com aquele que parece ser o partido ideal, o médico Vic Ullah (Omar Metwally). Mas, obviamente, nada é tão simples e definitivo quanto parece.
Além disso, a segunda temporada trouxe tensão a The Affair ao focar numa trama de mistério em torno de um assassinato, de Scotty Lockhart (Colin Donnell), irmão de Cole, num atropelamento obscuro. A intriga (a resposta sobre quem matou Scotty) era compartilhada com o espectador, mas conseguiu fazer com a audiência permanecesse ansiosa para saber sobre como isso se desenrolaria entre os personagens. Assim, a temporada termina com a prisão de Noah (acredite: isto não é um spoiler e nem um fator crucial na história) e com a culpa que este fato causa, por vários fatores, nas mulheres que o cercam.

Assim, a terceira temporada chega revelando que a história ainda rende fôlego para mais desdobramentos: afinal, o que acontecerá com Noah após sua saída da prisão? Helen conseguirá finalmente superar o amor perdido (por sua própria causa, como suas ações parecem o tempo todo denunciar)? Noah conseguirá recuperar todos os estragos que fez na vida dos seus filhos – por conta, sobretudo, da obediência cega aos seus desejos? E Allison, que sofre episódios depressivos desencadeados pela morte do filho, encontrará finalmente alguma estabilidade?
Diferente das temporadas anteriores, nesta, a questão da saúde mental tem um grande destaque. Allison passa por novo período de internação ao enfrentar uma crise, quando sua filha Joanie atinge a mesma idade que tinha seu filho ao morrer. Já Noah, ao sair da prisão, entra em uma espécie de vórtice no qual se sente perseguido o tempo todo – e finalmente atacado por seu algoz, o agente carcerário John Gunther (vivido por Brendan Fraser, quase irreconhecível).
E aí, novamente The Affair reacende a sua grande sacada: a reflexão sobre onde, afinal, reside a verdade dos fatos, uma vez que estamos fatalmente presos dentro de nós mesmos, e condenados a ver o mundo por meio de nossos sempre limitados filtros. E isto é construído na narrativa de forma estupenda: somos como que colocados no corpo de Noah enquanto ele se vê vítima de violência, sentindo o sofrimento de quem não consegue ter clareza entre realidade e criação mental. Já com Allison, somos convocados a pensar se existe, afinal, vida “normal” após a queda proporcionada pela depressão, ou se as pessoas acometidas por ela estão eternamente estigmatizadas pela doença.
Um possível defeito desta temporada talvez seja o desenvolvimento pífio das tramas que cercam novos e antigos personagens, como Juliette (vivida pela importante atriz francesa Irène Jacob, de A fraternidade é vermelha), uma professora universitária com quem Noah terá uma aproximação marcada por tribulações, e cuja história só encontra alguma profundidade no último episódio. Já a Luisa e Vic não há qualquer intenção de desenvolvê-los, o que é uma pena, uma vez que desempenham papéis cruciais na história. Talvez este seja o ônus inevitável a uma narrativa construída de forma complexa e, por isso, com um alto número de personagens.
De todo modo, são elementos que não estragam a temporada, que consegue manter os fãs na expectativa da próxima. E, sendo assim, continuamos ansiosos para acompanhar o que acontecerá com Noah – se ele afinal entenderá os próprios desejos e conseguirá conciliá-los com uma vida razoavelmente estável – e com Allison – se ela encontrará alguma paz dentro da própria fragilidade. E assim The Affair segue, portanto, uma série imperdível.