“Esta presença do cotidiano, que, sei lá, não se dá em detrimento de nada… Quer dizer… Você não está perdendo incursões na fantasia ou na loucura por causa disso. Você parte da realidade para uma loucura autoral sua, vamos dizer. É isso?” Com esta “pergunta”, a cartunista Laerte abre sua entrevista com o multitalentoso Gregório Duvivier em Transando com Laerte, uma novidade nos formatos de talk show na televisão brasileira. Estreado há três semanas no Canal Brasil, o programa é grata surpresa aos que acreditam que, enquanto veículo de comunicação, a tevê está eternamente condenada a reduzir tudo aos raciocínios simples e aos produtos digeríveis pelo grande público.
Dirigido pelo premiado documentarista Kiko Goifman, Transando com Laerte experimenta na linguagem televisiva ao trazer um diálogo com as artes visuais. Laerte desenha durante o programa e é visto, logo na abertura, dividindo sofá com seu personagem Minotauro, que é considerado uma de suas criações mais sombrias, oriunda da fase artística gerada após a morte de seu filho Diogo. A estrutura do programa ainda divide espaço com Rafael Coutinho, outro filho de Laerte, também desenhista profissional. Concomitantemente à entrevista feita pelo pai, Rafael também “entrevista” um convidado por meio de um duelo de imagens. Na edição de Gregório Duvivier, ele divide uma tela com Júlia Bax. Juntos, fazem aquarelas e contemplam o “espalhar da tinta sobre a superfície, a mancha solta na vida”. Eis uma ótima metáfora sobre o programa.
A ainda breve vida de Transando com Laerte traz a esperança de que a televisão possa seguir experimentando formatos e dando lugar a personagens mais complexas, que efetivamente desafiam o grande público.
Ainda que Transando com Laerte esteja em um canal fechado, pertencente a um grande conglomerado de comunicação – o Canal Brasil faz parte das organizações Globo – penso que o fato de hoje podermos viabilizar um programa com uma persona tão instigante quanto Laerte já nos mostra um longo caminho percorrido rumo a uma televisão mais madura, inventiva, que busca nivelar seu espectador por cima. O princípio de diálogo que abre este texto dá pistas claras: em Transando com Laerte, pisamos no terreno das incertezas, dos raciocínios complexos, não-lineares, dos encontros e desencontros possíveis por meio da entrevista.
À diferença de outros entrevistadores, Laerte está visivelmente despreparado – no sentindo que não senta ao lado de seu entrevistado munido de perguntas previstas por sua produção, de verdades acerca daquele que ali encontra. Neste sentido, é possível sentir uma proximidade (certamente não-intencional) com o documentário Sete Visitas, que propõe a sete pessoas – alguns, famosos por suas técnicas de entrevista, como Eduardo Coutinho – que conversem com uma pessoa desconhecida, sem qualquer informação anterior.
Aqui somos convidados a entrar no mundo particular da cartunista, cuja notória inteligência desacomoda, antes de confortar. Os diálogos mantidos com seus convidados nos ajudam a penetrar nas tramas intrincadas de seu pensamento e experimentar, ainda que de forma vicária, a dor e a delícia de ser Laerte. Em um excelente perfil publicado na revista piauí, coube ao jornalista Fernando de Barros e Silva o desafio de traduzir em palavras o complexo fluxo de pensamento de seu entrevistado, que assim foi explicado: “não é preciso muito tempo de conversa para ver Laerte desempenhar o papel de ‘advogada da diaba’, expressão dele. É comum que estique uma argumentação até o limite para que, logo em seguida, dar meia-volta e inverter o sentido do pensamento, levando-o ao outro extremo, como alguém que submete de maneira quase instantânea suas ideias à contraprova. Sua cabeça funciona muitas vezes como um bumerangue – vai numa direção, volta noutra”.
Esta dinâmica “bumerangue” de Laerte é, afinal, o grande trunfo do programa e a origem da oxigenação que proporciona às entrevistas feitas nas atrações televisivas. Curiosamente, nesta mesma semana repercutiu nas redes o aguardado programa gravado por Jô Soares com a presidente Dilma Rousseff. Muitos enxergaram ali menos uma entrevista de fato – suscitada por dúvidas reais, por efetiva curiosidade – e mais um espécie de protocolo, um espaço dado à entrevistada para reiterar as convicções ideológicas do apresentador.
Creio que as diferentes leituras sobre o programa falam mais dos espectadores do que da entrevista em si. Os que criticaram a postura branda de Jô frente a Dilma talvez reverberem algo que se evidencia há anos: o sucesso deste notório apresentador consolidou-o mais como um grande showman do que efetivamente com alguém interessado na revelação do outro que ali se posta. Suas técnicas de entrevista costumeiramente têm sido usadas para exibir a si mesmo do que, ao contrário, proporcionar que o convidado se desnude, se construa, exponha as estranhas de sua lógica.
Neste sentido, a ainda breve vida de Transando com Laerte traz a esperança de que a televisão possa seguir experimentando formatos e dando lugar a personagens mais complexas, que efetivamente desafiam o grande público, ao invés de simplesmente entretê-lo ou acomodá-lo nas suas pretensas certezas.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.