A ficção-científica parece ter voltado com tudo à televisão em 2016. Desde o retorno de Arquivo-X, em janeiro, tivemos alguns enormes sucessos, como a terceira temporada de Black Mirror e o fenômeno Stranger Things, sem falar nas séries que já encerraram sua trajetória ou aguardam retorno, como Orphan Black e Sense8. Além disso, não podemos esquecer da nossa própria cria, 3%, que embora ainda precise encontrar o tom certo, vem fazendo bastante barulho. Para encerrar o ano, a HBO não poderia deixar de lançar sua principal e mais ousada série desde Game of Thrones, a grandiosa Westworld.
No cinema e na televisão, os robôs já ocupam lugar em nosso imaginário há tempos. Desde a inteligência artificial de HAL 9000, de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), até os cylons, de Battlestar Galactica (as versões de 1978 e 2003), a ficção tenta nos provocar perguntando: por que insistimos em brincar de Deus? Quem é Deus? Quem somos nós? Por que estamos aqui?
A questão central da nova série da HBO, entretanto, é outra: o que as máquinas fariam se conhecessem seu criador? A história começa com um interrogatório entre um robô defeituoso e seu programador. “Você já questionou a natureza da sua realidade?”, pergunta o controlador da máquina. A realidade, neste caso, seria o papel desempenhado dentro de um enorme parque temático. Pela bagatela de US$ 40 mil por dia, convidados podem viver uma experiência única ao chegar de trem em uma cidade do Velho Oeste povoada por androides anfitriões programados a interagirem e viverem histórias roteirizadas.
Os humanos podem fazer o que quiser com estes anfitriões, que têm a aparência perfeitamente igual a nossa. Estamos falando da permissão para transar, matar, estuprar e todas as barbaridades possíveis, com a certeza de que nenhum deles irá machucá-los. A cada noite, os robôs têm suas memórias apagadas e acordam no dia seguinte prontos para reviver o mesmo papel na narrativa, mas com novos convidados. Caso algum deles morra durante o enredo, renascem no outro dia como se nada tivesse acontecido.
Todos os dias, Dolores (a ótima Evan Rachel Wood) acorda, cumprimenta seu pai e vai fazer suas tarefas do dia, sempre com passos, diálogos e reações coreografadas por um roteiro. Quando a história não sofre alterações significativas pelos visitantes do parque, Dolores precisa passar por um inferno: encontra seu grande amor, Teddy Flood (James Marsden), jura amor eterno em frente às lindas montanhas da cidade, vê sua família ser morta, é estuprada e, por fim, baleada. O parque desempenha uma estranha repetição com centenas de narrativas interligadas e, caso alguém altere o caminho de um personagem, a história geral precisa se reajustar. Complexo? Não poderia ser diferente, já que a série é uma criação de Lisa Joy e Jonathan Nolan, autores de “Memento Mori”, conto que inspirou o filme Amnésia (2001), dirigido por Christopher Nolan, que, aliás, também dirige o primeiro episódio da série.
As perguntas vão além da mera filosofia homem e máquina: até que ponto o consumismo nos permite fugir da realidade? Quanto nós estamos dispostos a pagar para viver em simulacros, como a Disneyland ou o Mundo Mágico de Harry Potter?
Entretando, Westworld já existia em 1973. A história original foi criada pelo escritor Michael Crichton (falecido em 2008), o gênio por trás de ER – Plantão Médico e Jurassic Park, que escreveu e dirigiu o longa Westworld – Onde Ninguém Tem Alma. Para um autor obcecado por questionar a pequenez do ser humano e suas desastrosas criações (lembremos do Parque dos Dinossauros, por exemplo), os roteiristas da versão moderna de Westworld sabiamente mantêm questões muito caras, como: o que faríamos se existisse um lugar em que poderíamos deixar nossa natureza assumir todo o controle? Como seria um mundo sem leis? E as perguntas vão além da mera filosofia homem e máquina: até que ponto o consumismo nos permite fugir da realidade? Quanto nós estamos dispostos a pagar para viver em simulacros, como a Disneyland ou o Mundo Mágico de Harry Potter?
Diferentemente dessas referências do mundo real, Westworld não é apenas um parque interativo, mas um outro mundo onde visitantes podem vagar livremente sem interferências alguma de objetos ou fatos da vida real. Não há lei e nem ordem que os impeça, por exemplo, de estuprar quem quer que seja ou bancar o herói, ainda que aqueles personagens robóticos reajam de forma natural. Caso se sintam ameaçados, vão atacar.
O parque é dirigido por Robert Ford (Anthony Hopkins), um homem bastante assustador, que tem obsessão com suas criações. Para que eles sejam mais reais aos visitantes, Robert começa a inserir pequenas atualizações em suas narrativas, que adicionam novos gestos, pensamentos e traumas. Segundo ele, ser humano significa ser traumatizado pelo ato de viver. A coisa complica quando estes robôs começam justamente a se lembrar de seus traumas.
Embora a série demore a ganhar ritmo (na verdade, até o nono episódio, o ritmo não é lá muito contagiante, mas falaremos disso mais tarde), a forma como o parque é gerenciado fascina o público (os da série e os em frente à TV). Com vários pequenos detalhes deixados na tela, desde a linda abertura até a música ininterrupta que toca no prostíbulo da cidade, tudo é encantador, mágico e provoca a audiência a entender como aquilo tudo funciona. Dessa forma, nada é explicado de maneira clara nem didática, as histórias são jogadas sem que a gente entenda qual a ligação daquilo com a narrativa central e claramente há uma tentativa de criar uma mitologia para que os fãs se debrucem em teorias e mais teorias.
A direção de arte faz um trabalho bastante impressionante ao recriar um universo que consegue coexistir dentro de enredos tão distantes uns dos outras. É fácil nos transportarmos para dentro do Velho Oeste e esquecermos em que ano vivemos. As transições entre um mundo e outro nunca são abruptas e os dois universos são criados com ricos detalhes. As cenas, por exemplo, conseguem passar de um feno rolando na estrada para um laboratório antisséptico cheio de corpos nus sendo higienizados, tudo sem que o ritmo se quebre demais.
Essa realidade não existiria sem um elenco realmente bom. Desde a atuação detalhista de Evan Rachel Wood, que passa de uma garota ingênua para uma mulher perigosa em segundos sem soar falso, até o vilão sem nome interpretado por Ed Harris, há um show de interpretação e cuidado em cada gesto. A série ainda entrega um Anthony Hopkins bastante à vontade (sempre um prazer vê-lo atuar) e um Rodrigo Santoro carismático e com bastante importância para que seu papel cresça dentro da série.
O que prejudica Westworld, entretanto, é seu ritmo. Há séries lentas que conseguem prender a atenção de forma magistral, mas Westworld parece fazer isso apenas em momento pontuais. Se às vezes estamos tensos com a reação de um dos anfitriões, outras vezes estamos olhando para o relógio para saber quanto tempo ainda falta para o episódio acabar. Muito além da premissa interessante e das inegáveis discussões embutidas na trama, a história segura seu potencial em nome de algo que parece maior do que ela, como se a questão filosófica e inquietante fosse o bastasse para manter o público conectado.
O desenrolar de algumas histórias, por exemplo, é tedioso. A história da dona do prostíbulo é muito mais interessante do que de Dolores, que demora muito para entender o que está acontecendo e que é, aparentemente, a protagonista, visto o tempo que ganha na tela. Os diálogos insistem em ser os mais grandiosos possíveis, quase como se as cenas fossem uma peça de teatro, apelando para monólogos intermináveis. Além disso, há uma grande chance de os roteiristas estarem trabalhando com múltiplos períodos de tempo dentro da mesma narrativa, algo perigoso para uma série de TV e que pode deixa tudo confuso. Não complexo ou inteligente, apenas confuso.
Por isso, parece haver uma interessante divisão no público de Westworld. Há aqueles que veem na série apenas mais uma história de ficção e que esperam que os robôs saiam logo daquele parque e invadam o mundo real. Outros, a veem como uma grande parábola da criação divina, cheia de inteligência e metáforas existenciais. No fim das contas, de forma muito esperta, a HBO acabou suprindo a necessidade dos dois públicos em um produto interessante. Para os mais pretensiosos, Westworld é a grande série do ano, com metáforas que falam do ser humano e de sua ganância. Para o resto do público, a série tenta entregar o que há melhor no entretenimento.