Quando Sérgio Buarque de Holanda descreveu o conceito-chave do “homem cordial”, em sua obra Raízes do Brasil, ele não imaginava que seria mal interpretado. Muita gente segue até hoje crendo que a expressão apontava à suposta cordialidade do brasileiro ou apenas ao seus excesso de intimidade nas relações.
A interpretação faz com que se perca de vista do que o historiador de fato falava: da ideia do brasileiro como alguém que “age com o coração”. Mas não no sentido amoroso como se pode sugerir, e sim como alguém que opera de maneira emotiva e instintiva, ao invés de usar a razão. O homem cordial, então, é aquele que seguidamente vai reagir através da violência.
Não por acaso, o longa-metragem O Homem Cordial, de Iberê Carvalho, trabalha no registro da tensão permanente, em que todas as cenas envolvem pessoas com a tensão à flor da pele. A violência está sempre à espreita – mesmo no fã que pede para tirar uma selfie com seu ídolo. Todo ser humano que existe, com um celular na mão, é um potencial agressor.
O filme se inicia em um show de rock. A banda Instinto Radical acabou de voltar depois de vinte anos, com suas músicas de protesto. Só que, logo no início do evento, as pessoas da plateia começam a atirar coisas em direção ao vocalista, Aurélio (Paulo Miklos, em excelente performance, ganhou o Kikito de melhor ator no Festival de Gramado por este papel).
Logo em seguida descobrimos que Aurélio se envolveu em um episódio, não muito bem esclarecido, mas que viralizou na internet. Ele foi filmado quando protegia um “ladrãozinho” (um menino de onze anos) que teria roubado um celular e estava sendo linchado por um grupo num bairro de classe alta de São Paulo.
O que se vê no longa-metragem é um escalar gradativo da tensão para uma situação que se torna cada vez mais insustentável.
Por razões obscuras, o episódio se relaciona à morte de um policial. Assim, de uma hora para a outra, Aurélio (e, por consequência, sua banda) se tornou uma persona non grata para a cidade de São Paulo, e quiçá para o país, por supostamente ter se posicionado contra a polícia. E para onde correr em casos de violência quando a polícia te odeia?
Após o ataque, a criança desapareceu, mas a história é capturada por vários oportunistas. Dentre eles, os influenciadores digitais de direita que só pensam em causar (e chama muito a atenção que este seja um filme de 2019, enquanto parece retratar os Nikolas Ferreiras da vida que só aumentaram desde então).
Uma noite infernal
O que se vê no longa-metragem – que tem um roteiro cirúrgico de Pablo Stoll (do longa uruguaio cult Whisky, de 2003) e Iberê Carvalho – é um escalar gradativo da tensão para uma situação que se torna cada vez mais insustentável. A ação dura apenas uma única noite, em que várias questões se cruzam não apenas na vida de Aurélio, mas em toda a atmosfera da cidade em que ele habita.
O menino desaparecido é negro e sua família reside em um bairro periférico onde Béstia (vivido pelo rapper Thaíde), um ex-membro do Instinto Radical, mantém um bar. Ao se dirigir até lá, Aurélio será cobrado por sua própria branquitude: seria ele um aliado antirracista ou só alguém com um complexo de “salvador branco”?
Todos os temas são postos ao público em O Homem Cordial de maneira fluida e envolvente – vale lembrar que estamos diante de um thriller tenso, em que mal se consegue respirar. O filme parece nos dizer que a cidade se tornou uma espécie de não-lugar para todos, em que ninguém está confortável.
Há no longa uma cena, de uma sutileza atroz, em que se foca um “parklet”, aquele espaço arquitetônico elaborado para que as pessoas relaxem nas ruas, na perspectiva progressista do “ocupe sua cidade”. Contudo, como o filme deixa claro a todo instante, ninguém consegue de fato ficar à vontade nesse espaço – seja por estar à margem, seja pela paranoia em relação a quem está à margem.
O que resta ao fim da experiência proporcionada por O Homem Cordial é um gosto amargo na boca de quem sabe que vive em uma terra arrasada. Um filme imprescindível e urgente sobre um Brasil que está em chamas.
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