O jornalista Bruno Paes Manso está entre os grandes especialistas sobre criminalidade no Brasil. Formado pela PUC-SP, com mestrado e doutorado em Ciência Política pela USP, Paes Manso cobre o tema da violência há pelo menos três décadas. Seus últimos livros geraram muita repercussão por trazerem um mergulho em temas complexos da realidade brasileira. Em 2018, ao lado de Camila Nunes, publica A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil, que escrutina a instalação da facção criminosa paulista. Em 2020, lança A República das Milícias: Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, com o qual vence o prêmio Jabuti.
Sua obra mais recente, A Fé e o Fuzil: Crime e Religião no Brasil do Século XXI, constrói uma teia bastante interessante que cruza dois tópicos aparentemente afastados: a fé evangélica presente na história de muitos criminosos, sejam atuantes ou retirados da contravenção. Em entrevista exclusiva à Escotilha, Bruno Paes Manso fala sobre o processo da construção do livro e das dificuldades enfrentadas na hora de estabelecer a narrativa.
Escotilha » Teu livro traz uma reflexão sobre a intersecção entre o crime organizado e a fé evangélica. Eu queria saber como você se começou a se dar conta sobre essa relação, que não é exatamente óbvia.
Bruno Paes Manso » Eu comecei a perceber primeiro esses dois mundos como oposição, e a religião como uma porta de saída do crime. Como eu tinha que entrevistar matadores e criminosos, queria saber sobre os crimes que praticavam, como chacinas, tráfico, etc. Era muito difícil fazer essas entrevistas, então comecei a conversar com ex-matadores e ex-bandidos, porque eles podiam falar do passado com mais tranquilidade, até porque fazia parte do discurso deles de conversão, dos testemunhos.
Primeiro, passei a me surpreender com estes instrumentos que a religião evangélica trazia para dar oportunidades às pessoas que queriam transformar suas identidades a partir do momento que percebiam que estavam no fundo do poço e precisavam se reinventar. Isso acontecia com muitos bandidos, que percebiam depois de um tempo que sua vida era sem sentido, perdiam todos os laços de afeto, entravam em depressão, eram vítimas de violência, e aí sentiam que era preciso renascer, reinventar-se a partir de uma nova crença, para ter uma vida mais plena.
Para mim, esse mecanismo sempre foi muito interessante. Eu ficava colecionando essas histórias, mas sempre tive um certo pudor como jornalista por achar que escrever sobre fé e crença era algo pessoal demais, pois todo mundo tem direito à sua fé. Então achava que não era um tema de interesse público. Mas, vira e mexe, quando escrevia sobre violência, contava algum caso.
Isso mudou quando fui fazer o livro A República das Milícias, e comecei a encontrar essas cenas de traficantes que passavam a usar a fé não para transformações pessoais, de cunho privado, mas para legitimar seu discurso de autoridade nos seus bairros, como foi o caso de Peixão, no Complexo de Israel, ou do Fernandinho Guarabu, no Morro do Dendê. Era o caso também dos milicianos, que misturavam o discurso violento com o de moralidade, como se eles representassem o bem em uma guerra contra o mal.
Veio a eleição do Bolsonaro, com um discurso evangélico muito presente, ao mesmo tempo sendo usado para justificar um projeto político. Então eu achei que era o momento de eu escrever sobre o assunto, pois ele tinha ganhado uma relevância pública e política. Aí surgiu esse encontro entre a fé e o fuzil.
Com a mudança de governo e com os escândalos envolvendo a família Bolsonaro, é possível vislumbrar uma alteração nesse cenário sobre o discurso da fé e sua relação com o crime?
Penso que há mais espaço por isso. Por um lado, a demonização que se fazia à esquerda começa a ficar menos presente, porque a economia segue circulando, o governo passa a fazer medidas que podem agradar as pessoas que vivem em bairros pobres, que a esquerda não é o diabo que se pintava… Acho que isso leva um tempo.
Mas esses grupos continuam muito engajados nesse discurso em cima dos valores morais, de uma disputa do bem e do mal, e também sabem usar muito bem a internet. Isso dá margem à construção de grupos que parecem seitas e se relacionam entre si.
A médio prazo, creio que sim, mas penso que sempre estamos sujeitos aos ânimos e às manipulações que podem acontecer, dependendo de crises econômicas e políticas. É muito fácil ativar esse discurso religioso que traz uma ideia de um propósito de luta, o que é muito forte. Esse discurso é muito fácil de engajar as pessoas, pois elas se sentem vivendo uma vida mais plena, com um propósito para o qual elas podem se dedicar.
Hoje vivemos num mundo muito racional e prático, no qual temos que matar um leão por dia, e sem grandes questões metafísicas. Por isso, é muito fácil a gente se questionar sobre qual o sentido disso tudo. E alguém que oferece uma resposta transcendental para o sofrimento da vida consegue engajar as pessoas. Nesse mundo materialista, a gente esqueceu que a religiosidade é importante.
Algo que me chama muito a atenção no seu trabalho é a sua rede de fontes. Como foi o cultivo desses contatos? Houve muita dificuldade para estabelecer essas fontes?
É um processo meio “bola de neve”, em que uma fonte leva a outra. A oportunidade de encontrar pessoas dispostas a falar sobre isso já é motivo suficiente para eu ir encontrá-las. Quase sempre eu chego sendo apresentado por alguém de confiança delas. Minha abordagem é mais etnográfica que investigativa ou policial. Meu interesse não é denunciá-los, mas mostrar uma cena, um tipo de moralidade urbana que a gente nem sempre consegue entender.
“A discussão é essa: qual o papel do Estado para reduzir essa desigualdade? Como a gente vai conseguir desarticular um modo de vida que as pessoas percebam que essa disputa só causa vazio e ansiedade?”
Bruno Paes Manso
Sempre tenho o objetivo de não revelar o nome deles inteiro caso isso coloque-os em risco. Em A Fé e o Fuzil, eu falo mais dos nomes porque são pessoas que eu entrevisto para falar das trajetórias delas, e não dos crimes. Mas eu sempre deixo isso muito claro e tento sempre preservar o trato que fiz com estas pessoas. Isso é fundamental para o meu trabalho.
No caso dos evangélicos, como são pessoas com outros tipos de trajetórias, pude manter contato e acompanhá-los por muito tempo. No livro, esse tempo de contato, às vezes durante 20 anos, foi importante para a narrativa. Uma coisa foi conhecer alguém em 2003, e outra é observar a mudança dessa trajetória durante esse tempo, acompanhando a vida dessas pessoas na medida do possível.
A Fé e o Fuzil tem uma temática central, mas os capítulos acabam se estendendo para muitos assuntos para além do crime e da religião. Houve dificuldade para pensar na organização do livro?
Foi muito mais difícil do que A República das Milícias. Neste livro anterior, por mais que eu falasse do jogo do bicho, dos esquadrões da morte, da trajetória da ligação do crime com as forças armadas, a relação entre todos esses tópicos era mais óbvia, mais linear. Era uma história do fortalecimento da ligação das milícias com o crime. O maior desafio ali talvez fosse contextualizar isso com a cena do Bolsonaro, mas tive a sorte de conversar com um miliciano que era do batalhão do Fabrício Queiroz. Então a coisa ganhou uma organicidade mais simples.
Já A Fé e o Fuzil foi bem mais difícil. Primeiro eu começo com as histórias das conversões, depois vou para a zona oeste do Rio, faço um panorama da expansão dos evangélicos, a relação das igrejas com o processo de migração, e aí por diante. Algo que ligava todos os capítulos era o desafio de que todos tivessem personagens.
Teria mil possibilidades de eu escrever sobre esse tema, então tive que escolher algumas, sempre com uma certa insegurança sobre até que ponto ficaria confuso, seriam assuntos demais, etc. Toda a questão é complexa e o assunto teria mil entradas, então acabou sendo uma escolha por um arco narrativo que fizesse sentido. Mas eu tive milhares de dúvidas na hora de montar a estrutura.
O último capítulo de A Fé e o Fuzil tem um certo tom pessimista sobre para onde vamos dentro desse cenário, tecendo a ideia de que um certo abandono do estado acaba dando margem para a formação de “governos paralelos”. Com governos mais fortes olhando para as populações mais pobres, há possibilidades de mudança quanto ao futuro?
Mais do que o abandono do governo, há a capacidade do mercado de cooptar tudo. O próprio governo, com essa visão de empreendedorismo, típica dos pentecostais e dos governos liberais que surgem com força depois dos anos 90, difunde a ideia de que, para viver nas cidades, é preciso gerar dinheiro, pois só assim vai sobreviver. Você pode se articular coletivamente, mas o Estado faliu, as empresas faliram… esse é o discurso.
Então o próprio mercado se apropria da linguagem do sagrado e passa a justificar essa competição selvagem pelo dinheiro como um norte para as pessoas, que não podem mais viver com a tranquilidade de um dinamarquês, por exemplo, que sabe que estará seguro mesmo se não conseguir um trabalho.
A discussão é essa: qual o papel do Estado para reduzir essa desigualdade? Como a gente vai conseguir desarticular um modo de vida que as pessoas percebam que essa disputa só causa vazio e ansiedade? Mas é muito difícil essa transição coletiva. É muito complicado ter uma visão idealista porque, na hora H, se você não fizer parte do sistema, você vai morar na rua, não vai comer.
Ao mesmo tempo que este é um caminho equivocado e obviamente errado, também parece impossível desviar a rota. Isso é o mais dramático. Por isso, o fim do livro tem um tom pessimista quanto ao estágio civilizatório que chegamos, com guerras ameaçando o mundo, o meio ambiente acabando…
Por enquanto, parece impossível pensar em alternativas. Talvez o único caminho é a gente descobrir alguma coisa que nos faça compreender que a vida precisa ser vivida de outra forma. Mas, por enquanto, parece que a gente não tem como viver de outra maneira.
Eu fui falar com o pastor Ed René Kivitz, que é bastante progressista, e ele me falou que a interpretação dele do apocalipse não é que o mundo vai acabar. O que vai acabar é a forma com que a humanidade vive, e que Jesus falou que a humanidade vai ter que aprender a viver de outra forma. Essa é uma outra maneira de ver o fim do mundo.
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