Há uma espécie de onda de obras sobre a multifacetada experiência do luto – motivadas, talvez, pelos traumas potencializados pela pandemia de Covid-19. Frente a essa quantidade de livros, é até difícil pensar em abordagens originais do tema, que visita toda a magnitude dos sentimentos humanos. Antes Que Eu Esqueça (editora Ercolano, 2025, tradução de Andréia Manfrin Alves), livro da escritora francesa Anne Pauly, lançado em 2019 e só agora publicado no Brasil, enfrenta esse desafio de forma perspicaz.
Seu diferencial, possivelmente, é abrir-se a ângulos mais leves – e até bem-humorados – para narrar a história que é contada pela escritora, sobre a perda do seu pai por um câncer. O luto, no entanto, começa bem antes da morte de Jean-Pierre, uma vez que ele enfrenta, há alguns anos, uma série de aniquilamentos em vida. Ele está em uma cadeira de rodas por ter perdido uma das pernas por consequência da doença. E, ao longo das décadas, Anne, ao lado de seu irmão Jean-François, tem sido forçada a ressignificar a existência desse pai – cujas lembranças passam pelas cenas de violência que ele, bêbado, protagonizava junto à esposa, já falecida.
Trata-se então de um relato de uma família mergulhada em rupturas e baques. E, mesmo com tudo isso, esse pai (e, por que não, também essa filha) é muito mais do que uma coisa só, um tipo estanque. E não, esse homem não é apenas um monstro.
‘Antes Que Eu Esqueça’ e o esforço pela consolidação da memória

Premiado em 2020 com o Prix du Livre Inter, Antes Que Eu Esqueça se tornou um grande sucesso na França. A repercussão positiva pode ser explicada por alguns fatores, como o seu estilo franco e despojado, e muito próximo de seus leitores. Anne Pauly, que é uma ativista LGBTQIA+, encara com uma sinceridade comovente a forma pela qual teme o desaparecimento do pai, a partir do esquecimento daquilo que ele tinha de mais humano: suas idiossincrasias.
Trata-se então de um relato de uma família mergulhada em rupturas e baques. E, mesmo com tudo isso, esse pai é muito mais do que uma coisa só, um tipo estanque.
São pequenas coisas só reconhecíveis por quem realmente conviveu com alguém em sua intimidade. Ao longo de Antes Que Eu Esqueça, a escritora vai apresentando sua coleção das peculiaridades do pai: o modo que ele achava que tudo poderia ser resolvido dando um cheque; sua maneira de conversar sobre bobagens mundanas, por mais tenso que fosse o momento; sua mania de decorar o chapéu com penas recolhidas do chão; ou sua devoção paradoxal ao catolicismo, que convivia com seu misticismo aguçado.
Qualquer um que já perdeu um ser muito amado sabe bem: são nessas pequenezas que a memória se preserva. Pensar que elas serão em breve esquecidas é o que mais dói. E é em prol dessa permanência que Anne Pauly parece batalhar.
Mas não apenas isso: a luta é pela dignidade de legar ao pai um relato real sobre sua odisseia neste mundo, ainda que ele tenha sido um alcoólatra violento que, como ela admite, tornou a vida da mãe um inferno em muitos aspectos. Mas a vida jamais se cristaliza, e há sempre tempo suficiente para que uma narrativa tome novos rumos.
A escritora assim descreve o pai: “A verdadeira personalidade, por fim livre das roupas fedendo a álcool, emergiu: um contemplativo fino mas gauche, gentil mas bruto, generoso mas autocentrado, devorado pela ansiedade e pela timidez, inacreditavelmente travado. Um turista da vida. Contra todas as expectativas, o monstro era humano, vulnerável, cativante”. Com seus personagens profundamente humanos, Antes Que Eu Esqueça se apresenta como uma obra surpreendente e original sobre o luto.
ANTES QUE EU ESQUEÇA| Anne Pauly
Editora: Ercolano;
Tradução: Andréia Manfrin Alves;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Maio, 2025.
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