Reinterpretar A Sagração da Primavera, uma das peças mais densas e desafiadoras do repertório de qualquer coreógrafo, é uma empreitada ousada e, para alguns, até temerária. No entanto, Déborah Colker abraçou esse desafio.
A obra de Igor Stravinsky nasceu para dançar. Estreada pela companhia Ballets Russes, de Sergei Diaghilev, em 29 de maio de 1913, em Paris, a coreografia de Vaslav Nijinsky dividiu a plateia entre vaias e aplausos, chegando até a resultar em confrontos físicos. Esse evento marcou um ponto de ruptura na história da música.
Ao recriar A Sagração da Primavera, Déborah se permitiu afastar-se do peso do clássico, renomeando sua versão simplesmente como Sagração, apresentada no palco do Guairão, como parte da programação do Festival de Curitiba. Essa liberdade estende-se também à narrativa, onde ela optou por não retratar a cena do sacrifício, em vez disso, buscando uma interpretação mais ampla da evolução humana e do sacrifício necessário para alcançar a sabedoria e a sensibilidade.
Sua versão da peça, com cerca de 70 minutos de duração, incorpora ritmos brasileiros e sons indígenas, mesclando-os com a música clássica de Stravinsky. Essa fusão sonora é uma homenagem à natureza fragmentada da obra original e representa uma evolução natural da música erudita.
‘Sagração’: reinterpretação contemporânea
Sagração da Primavera, embora menos catártica que os espetáculos anteriores de Colker, como Cão sem Plumas, é indiscutivelmente ousada.
A abordagem de Déborah não é apenas uma homenagem, mas sim uma reinterpretação contemporânea na qual elementos como a queda do céu e a ascensão do samba são integrados à narrativa. Essa abordagem antropofágica, em que ela “mastiga” o trabalho de Stravinsky para produzir algo novo e vibrante, celebra a criatividade e a diversidade cultural.
Além disso, a inclusão de figuras como Eva negra e Abraão em seu enredo demonstra sua habilidade em criar uma experiência artística única e multifacetada.
O enredo nos conduz por um caminho sinuoso, entrelaçando mitos antigos com eventos históricos significativos. Começamos com a evocação da “avó do mundo”, figura venerada em algumas culturas indígenas, e mergulhamos em um universo microscópico, passando por bactérias e criaturas primitivas, até alcançarmos a descoberta do fogo.
No meio dessa linha do tempo complexa, surge Abraão em um barco, não apenas como um viajante comum, mas como um símbolo de fé e coragem. No entanto, em vez de seguir uma narrativa convencional sobre as origens, somos confrontados com a representação de uma Eva negra, uma provocação intelectual proposta pelo rabino Nilton Bonder, que desafia as convenções estabelecidas.
Nesta interpretação, Eva não se contenta em ser apenas uma figura passiva; ela se torna uma transgressora, desafiando as normas sociais e reivindicando seu direito ao livre-arbítrio. Essa narrativa é apresentada em um palco iluminado por Beto Bruel e adornado pelos figurinos de Claudia Kopke.
A liberdade se manifesta através da cenografia de Gringo Cardia e, especialmente, pelo trabalho de Alexandre Elias, responsável pela música, que recria a obra de Stravinsky, incorporando sonoridades brasileiras e indígenas.
Sagração da Primavera, embora menos catártica que os espetáculos anteriores de Colker, como Cão sem Plumas, é indiscutivelmente ousada. Ela encanta os olhos com suas imagens e instiga com a tensão entre suas múltiplas sonoridades.
É importante permitir-se mergulhar em um espetáculo que transporta o espetáculo através dos inúmeros reinos do mundo animal, desde as minúsculas bactérias até as majestosas serpentes e quadrúpedes. Aqui, uma rica variedade de trajes e cenários se entrelaçam para criar uma atmosfera singular, meticulosamente orquestrada por Cardia.
O cenário se desdobra diante de nós, com bambus e estacas que se metamorfoseiam em objetos encantados, assumindo formas que vão desde cabanas até embarcações, redes e lanças. A maleabilidade do espaço cênico nos conduz por uma jornada que transcende os limites terrestres, conectando-nos ao vasto céu, enquanto os efeitos luminosos habilmente criados por Beto Bruel amplificam cada cena.
Sagração celebra três décadas da renomada Companhia de Dança Deborah Colker, mergulhando nas raízes das tradições dos povos nativos por meio de uma apresentação imersiva e expressiva, que envolve um elenco composto por 15 bailarinos.
Ancorada nos avanços do universo contemporâneo da coreografia, esta produção representa uma audaciosa busca por inovação, uma característica distintiva de uma das mais proeminentes companhias de dança do Brasil.
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