Em O Sabor da Vida, nós, espectadores, somos imersos em um mundo de requinte e paixão gastronômica, onde Juliette Binoche (de A Liberdade É Azul), uma das maiores atrizes do mundo hoje, assume o papel de Eugénie, uma cozinheira talentosa que há duas décadas lidera a cozinha de Dodin Bouffant, um chef epicurista do século XIX interpretado por Benoît Magimel (de Enquanto Vivo).
Desde o início do filme, somos apresentados a Eugénie colhendo legumes nos jardins de Dodin, seu sorriso discreto iluminando o ambiente enquanto ela delicadamente arruma seus cabelos entre os cortes precisos das alfaces para o refogado que vai preparar. Junto com sua assistente Violette, interpretada por Galatéa Bellugi, move-se pela cozinha com uma precisão quase coreografada, sem a necessidade de palavras, em meio aos caldeirões ferventes e aos fornos fumegantes.
Neste cenário, não há suor, palavrões ou gritos característicos de cozinhas retratadas em outras obras. Aqui, as interações são sussurros de satisfação ou meros olhares que expressam o deleite gustativo, o prazer dos aromas. O filme evoca a atmosfera do filme dinamarquês Festa de Babette, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1988.
O Sabor da Vida surge como um refúgio cinematográfico necessário em um momento de filmes duros, ainda que excelentes, como Zona de Interesse e Anatomia de uma Queda. Adaptado do romance de Marcel Rouffant, A Vida e a Paixão de Dodin-Bouffant, pelo diretor vietnamita Anh Hung Tran, conhecido por seu trabalho em O Cheiro do Papaia Verde (1993), o longa nos presenteia com uma obra de arte que não se acanha em celebrar valores do passado, como discrição, etiqueta, nobreza e beleza intrínseca.
Adaptado do romance de Marcel Rouffant pelo diretor vietnamita Anh Hung Tran, o longa nos presenteia com uma obra de arte que não se acanha em celebrar valores do passado, como discrição, etiqueta, nobreza e beleza intrínseca.
Se essa indulgência alimenta um certo fetiche passadista, é um preço que estamos dispostos a pagar para testemunhar uma das atrizes mais brilhantes do cinema em ação, seja ela preparando ovas de peixe na manteiga, moldando quenelles perfeitas ou preparando um omelete norueguês, bolo recheado com sorvete e coberto de merengue flambado.
As alegrias e dores íntimas de Eugénie são gradualmente reveladas ao longo da narrativa, transformando o que poderia parecer inicialmente um drama convencional em algo mais complexo e inesperado. A relação entre Eugénie e Dodin, inspirado no renomado gastrônomo francês Jean Anthelme Brillat-Savarin, é marcada por um profundo respeito mútuo, assim como a camaradagem entre os amigos que se reúnem regularmente em torno da mesa, criando um ritual quase religioso em torno da comida. Enquanto isso, o interesse de Eugénie pela jovem protegida Pauline acrescenta outra camada à trama. A ideia de que conhecimento só faz sentido se puder ser transmitido às novas gerações.
Juliette Binoche brilha tão intensamente que parece transcender a atuação, emanando serenidade e carisma físico em cada cena. A química entre Binoche e Magimel, que já foram um casal na vida real, confere à história uma dimensão agridoce, bela e melancólica. Filmados em uma luz dourada e banhados pelo sol, ou apenas à luz de velas, eles compartilham momentos de intimidade enquanto trocam receitas e planejam menus, e o design de som luxuoso nos permite capturar até mesmo os sons mais sutis da culinária.
As nuances das relações de classe em O Sabor da Vida são habilmente exploradas, revelando que os servos são tão sofisticados e conhecedores quanto seus senhores. Esses conhecimentos são um patrimônio cultural, civilizatório, e não meramente um privilégio dos ricos. No entanto, a dinâmica entre Dodin e Eugénie sugere uma sutil inversão de papéis, na qual o verdadeiro valor deles reside na habilidade de traduzir genialidade em pratos deliciosos. Mesmo quando o mundo ao redor permanece inalterado, o sabor das coisas pode surpreender deliciosamente. Assim como o amor que os une.
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