Houve muita especulação quando do lançamento de Coringa, em 2019, sobre a glorificação da psicopatia e o risco de o filme estimular violência imitativa. Talvez o diretor Todd Phillips também tenha sentido esse impacto, porque Coringa: Delírio a Dois parece ser um ato de expiação pelos pecados percebidos no original, do qual a sequência parece ser uma espécie de antítese. A sequência, em cartaz nos cinemas, é um filme de ideias disfarçado de um entretenimento extremamente sombrio, e é mais interessante por essas ideias, embora subdesenvolvidas, do que como entretenimento propriamente dito.
O novo Coringa também é um musical — para desespero dos fãs do primeiro filme e do gênero super-heróis —, que usa ousadamente o grande cancioneiro norte-americano como fonte de inspiração para falar de ressentimento, amor, perdas e vingança, explorando as nuances sombrias de clássicos como “Get Happy”, “Bewitched, Bothered and Bewildered” e “That’s Entertainment”.
O fato de o filme inserir seus números musicais — que se desenrolam principalmente na mente perturbada de Arthur, mas recebem o tratamento completo de cartola e fraque ao estilo MGM — em um melodrama sombrio e longo de prisão/tribunal é uma ideia interessante e sublinha a personalidade dividida de Arthur/Coringa.
Como o título sugere, Coringa: Delírio a Dois dá a Arthur uma companheira na forma de Lee Quinzel, também conhecida como Arlequina (Lady Gaga), uma colega de cela no Hospital Estadual de Arkham para Criminosos Insanos e a maior fã do Coringa. É ela quem desperta o Fred Astaire interior do anti-herói, e os duetos musicais do casal são o destaque peculiar e desigual deste filme bastante estranho, mas intrigante.
Gaga, obviamente, sabe cantar, mesmo quando tenta cantar mal, e Phoenix mal consegue segurar uma nota musical, mesmo quando tenta cantar bem; esses contrastes conferem um tom de verdadeira melancolia aos números musicais, como na sequência de fuga da prisão ao som de uma incandescente versão de “If My Friends Could See Me Now”.
As cenas no hospício, com Brendan Gleeson interpretando um guarda sádico, têm uma energia suja e pulsante que se perde um tanto durante o julgamento de Arthur pelos assassinatos do primeiro filme.
O julgamento, que ocupa boa parte de Delirio a Dois, é filmado em tons sombrios de marrom, com a ótima Catherine Keener como a advogada de defesa de Arthur e legiões de fãs do Coringa quase em estado de revolta do lado de fora. A questão é se Arthur estava em seu “juízo perfeito” quando matou aquelas pessoas — era ele o Arthur Fleck, um zé ninguém humilhado, ou o Coringa, tomado por uma fúria justiceira contra uma sociedade que esmaga os invisíveis?
‘Coringa: Delírio a Dois’: Phoenix
Phoenix, vencedor do Oscar pelo original, continua sendo o principal motivo para prestar atenção na trama. Os filmes do Coringa são o caso mais extremo da indústria cinematográfica em transformar cinema de quadrinhos em arte séria, digna de Oscar, mas essa tentativa flerta com uma certa pretensão, e Phoenix é o único que escapa disso. Seu Arthur continua sendo uma criação indelével, com suas omoplatas pontiagudas que parecem asas quebradas de um anjo e uma risada que poderia dar pesadelos a Franz Kafka.
Delírio a Dois tenta esfregar em nossas caras a hipocrisia de uma cultura que idolatra assassinos carismáticos e políticos com discursos de ódio.
A risada — um rito convulsivo que é tanto um grito de desafio quanto um lamento de derrota diante da crueldade do universo — é o aspecto mais devastador emocionalmente de ambos os filmes do Coringa. É o grito de um homem derrotado (e isso irrita o fã mais aguerrido do personagem) não só fisicamente, mas existencialmente, e persegue o espectador muito além dos créditos finais.
Por outro lado, o alter ego homicida de Arthur é a razão pela qual os fãs se revoltam nas ruas. Coringa é o motivo pelo qual a psicótica Arlequina enlouquece (ela não tem interesse em Arthur). O Coringa canalizou a raiva de Arthur, e promete dar vazão à anarquia, dentro e fora da tela. Delírio a Dois tenta esfregar em nossas caras a hipocrisia de uma cultura que idolatra assassinos carismáticos e políticos com discursos de ódio. Por vezes, não sempre, consegue. Quando Arthur abre mão do Coringa, a decepção de muitos é inevitável. Arlequina e muitos de seus admiradores deixam o tribunal, desapontados. Talvez por isso, também, que muitos estejam rejeitando o filme.
É raro um blockbuster se autodestruir conscientemente e tentar arrastar o público junto. Tem sido interessante, no mínimo, ver a reação dos espectadores a um filme que os pune por seus devaneios de vingança.
Se os super-heróis funcionam como uma fantasia de poder para nós, humanos impotentes, os supervilões encenam algo mais sombrio e sedutor — a fantasia de usar esse poder para acertar as contas com um mundo que se recusa a nos enxergar como nós nos enxergamos. Com ousadia, Coringa: Delírio a Dois afirma que qualquer um que veja o Coringa como um herói a ser imitado é tão delirante, doente, quanto Arthur Fleck.
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