A epidemia de AIDS nos anos 1980 e as transformações em torno das percepções públicas sobre o vírus HIV têm sido dois temas recorrentes na ficção e na não-ficção. Foi em 1997, por exemplo, que Susan Sontag lançou dois grandes ensaios chamados Doença como metáfora / Aids e suas metáforas, discutindo os sentidos entrelaçados à Aids e ao câncer. O escritor francês Anthony Passeron aborda o tema, no tocante Os Meninos Adormecidos (editora Fósforo, 2024, tradução de Camila Boldrini), por uma ótica relativamente nova: falando do silêncio atrelado à doença por meio da história das vítimas do vírus.
Pisando no terreno da autoficção, ele narra a transformação causada em sua família pela tragédia que acometeu o seu tio, irmão mais velho do seu pai, que morreu da doença durante os anos 1980. Désiré era tido como o filho mais querido dos pais, dois trabalhadores simples em um pequeno vilarejo na França.
Inspirado por autores como Annie Ernaux e Édouard Louis, Anthony Passeron se utiliza de uma escrita sintética e simultaneamente crua e comovente para honrar os acontecimentos que atravessaram de forma traumática a sua família.
Enquanto o pai de Anthony dedicava sua vida a levar em frente o negócio dos pais, um açougue que alimentava a região, seu irmão mais velho gozava dos benefícios de ser o primogênito e o primeiro da família a terminar o ensino superior, o que lhe dava a chance de cair na gandaia sem grandes cobranças.
Bem nessa época, uma nova droga assolava os Estados Unidos e logo chegava à Europa: a heroína, usada principalmente de forma injetada. Isso fez com que o vírus HIV, ainda em fase de descoberta inicial, fosse contaminando cada vez mais gente. Entre essas pessoas, estava Désiré, que fazia parte dos três Hs que eram os principais alvos da nova doença: os homossexuais, os usuários de heroína e os haitianos.
Anthony Passeron passa então a revisitar a sua história a partir das memórias interditadas por sua família, que não discute o tema – além de Désiré, morreram também sua esposa Brigitte e a filha que ambos tiveram. Afogada no não-dito, a tragédia dos Passeron se transforma um fantasma que ninguém quer encontrar.
A história dos esquecidos
Mistura de narrativa biográfica com pesquisa sociológica, Os Meninos Adormecidos intercala os capítulos em duas tramas. A primeira é a história da família do autor, abordando o passado por meio das tintas da autoficção – o que aqui significa que o escritor se permite a liberdade de imaginar detalhes sobre o que seus antepassados viveram, conectando-os com a realidade pobre e sofrida das outras famílias com quem dividiam o espaço.
Na outra trama, está a trajetória conturbada e heróica dos tantos pesquisadores que, principalmente nos Estados Unidos e na França, corriam contra o tempo encurtado por um vírus que matava suas vítimas muito rapidamente. É uma história cercada de preconceitos, resiliência, tentativa e erro até que se conseguisse mapear esse organismo parasitário que desde cedo foi associado a estigmas (e que, infelizmente, sobrevivem até hoje).
Inspirado por autores como Annie Ernaux e Édouard Louis, Passeron se utiliza de uma escrita sintética e simultaneamente crua e comovente para, de certa forma, honrar os acontecimentos que atravessaram de forma traumática a sua família, além de tantas outras. No prólogo ele registra que “este livro é a última tentativa de fazer com que algo sobreviva”, reivindicando aqui que todas as pessoas merecem a permanência por meio da literatura.
OS MENINOS ADORMECIDOS | Anthony Passeron
Editora: Fósforo;
Tradução: Camila Boldrini;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Julho, 2024.
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