Aos 79 anos, o escritor João Silvério Trevisan está entre os grandes nomes da literatura brasileira. Nem sempre tem o reconhecimento devido à qualidade de sua obra – e ele sabe disso. Mas isso não o desestimula de trazer ao mundo suas belas obras. Dentre as mais tocantes, estão, sem dúvida, os relatos de suas memórias. Em 2017, foi o impactante Pai, Pai, em que João recupera a figura do pai em busca de alguma redenção possível. Já em 2023, foi o momento de lançar o muito comovente Meu Irmão, Eu Mesmo, em que mais uma vez retoma a própria vida a partir do atravessamento com a vida de seu irmão Cláudio, vítima de um câncer linfático aos 48 anos.
Parafraseando a famosa frase, quando João fala de Cláudio, ele fala também de João. Mas vai muito além disso: ele entrega uma história absolutamente representativa da trajetória de tantas pessoas no Brasil e no mundo, pertencentes à comunidade LGBTQIA+, e que lutaram (e ainda lutam) para buscar uma família possível.
Para João, esse pertencimento foi entregue, em boa parte, pelo amor de Cláudio. Em 1992, quando descobre ter contraído o vírus HIV, é Cláudio que o abraça, sem julgamentos, ao lado da família que havia formado com Ziza. O irmão, um homem heterossexual abençoado pela delicadeza, trocou os números pela literatura e tocou com uma esposa uma livraria, com todas as dificuldades que isso trouxe.
Nessa justa declaração ao irmão, João dá sequência à trilogia iniciada por Pai, Pai, e que espera ainda a terceira obra. Se, no primeiro livro, ele buscava uma reconciliação com o pai (um homem alcoólatra e ausente que deixou aos filhos um legado de brutalidade), em Meu Irmão, Eu Mesmo, a herança é do amor em seu estado mais puro. João, de certa forma, sabe que seu irmão mais novo o protegeu, inclusive financeiramente nos momentos difíceis; por outro, foi também um pai possível para ele.
A biografia de um tempo histórico
Mas tanto Pai, Pai quanto Meu Irmão, Eu Mesmo cativam porque vão além do biográfico e documentam questões mais amplas, como os testemunhos vivos de João Silvério Trevisan sobre os momentos históricos que viveu. Dentre eles, estão a incompreensão em torno de sua literatura, por vezes chamada de pornográfica (“Eu tomo o partido da pornografia. Mais que do erotismo, que sempre me parece próximo da autocensura”, escreve), e de que como as vítimas de AIDS foram, por muitas décadas, amarradas aos piores estigmas.
Tanto Pai, Pai quanto Meu Irmão, Eu Mesmo cativam porque vão além do biográfico e documentam questões mais amplas, como os testemunhos vivos de João Silvério Trevisan sobre os momentos históricos que viveu.
Em 1992, João tinha 48 anos e já se sentia assombrado pelo fantasma da morte que cercava os homossexuais. Uma manifestação de herpes faz com que um médico solicite o teste, que confirma que ele é soropositivo. Ingressa naquilo que ele chama de “Confraria da Dor”, expressando a via crucis que cerca as pessoas que recebem o diagnóstico e precisam (muitas vezes sozinhas) ressignificar suas existências.
Mas o escritor, para quem a escrita equivale a respirar, sabe bem que morte e vida são mais próximas do que parece. “O fato é que preciso escrever. De qualquer jeito, mas escrever. Rascunhos. Assim como a vida é um amontoado de rascunhos. Nunca se vive exatamente como se quer ou se planeja, tem sempre algo escapando das expectativas. Que o rascunho se torne obra. Que eu corra o risco. Tanto quanto a vida do meu irmão. E a minha. Será o retrato da nossa dor, cujas ferroadas não se pode antecipar nem evitar”.
É dissuadido pelos irmãos a trazer sua condição a público, algo que ele só faz alguns anos depois. Mas o tema é central neste livro, uma vez que Trevisan revela o processo enfrentado por ele e tantos amigos e conhecidos seus para lidar com a epidemia que surgia e que era cercada pela obscuridade e pelo preconceito.
Sua visão, entretanto, é original. Ele conta que sempre lutou para não ser visto de forma condescendente como um escritor HIV+, para que isso não influenciasse – para o bem ou para o mal – a recepção de suas obras. Narra então como exemplo o que ocorreu com Caio Fernando Abreu, cujos livros começaram a ser dignificados pela crítica. “Assim era o elogio fúnebre de intelectuais saudados como gênios em obituários comissionados pela misericórdia de ocasião – já que em vida nunca foram julgados dignos de glorificação”, provoca.
A imprevisibilidade da vida, contudo, faz com que seu irmão mais novo parta antes, em 1996. É um fato que o impacta profundamente, mas também ensina coisas e o inspira a criar, como um belíssimo poema que recita ao irmão em um Natal. Curiosamente, o câncer, como a AIDS (aproximação que faz lembrar de Susan Sontag) aparecem como “presentes” que esclarecem o quão raro e difícil é viver.
Do mesmo modo que fez na primeira parte dessa trilogia, Meu Irmão, Eu Mesmo é, de fato, uma dávida de João Silvério Trevisan aos seus tantos leitores. Ele escreve: “Joguei uma garrafinha no mar do nada, e você a encontrou. Ao escrever este livro, buscava a interlocução com alguém que conhece a solidão e o desamparo tão bem quanto eu. E resulta que estou diante de você. Passei estas paginas abarcando a minha dor em sua companhia. Se ate aqui você parecia uma pessoa estranha, agora nos tornamos cúmplices e confidentes”. De forma muito generosa, João cria pontes e nos oferece o abraço que tantas vezes não teve.
MEU IRMÃO, EU MESMO | João Silvério Trevisan
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 256 págs.;
Lançamento: Maio, 2023.
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