Na noite desta segunda-feira (24), o Festival de Curitiba abriu suas cortinas com um espetáculo que é, ao mesmo tempo, uma homenagem ao teatro e um retrato das dificuldades que ele enfrenta. Os Mambembes, inspirado no clássico O Mambembe, de Artur Azevedo, subiu ao palco do Teatro Positivo, lotado, não apenas para entreter, mas para reafirmar a resistência da arte em tempos de incerteza.
A montagem, dirigida por Emílio de Mello, revisita a comédia de 1904 e a reinterpreta com uma atualidade gritante. No centro da trama, está a saga de uma trupe teatral que percorre o interior do Brasil enfrentando desafios para levar seus espetáculos ao público.
O enredo ecoa a própria realidade do teatro brasileiro, que, apesar dos cortes de verbas, da falta de incentivos (a campanha da direita contra a Lei Rouanet é ironizada) e do desprestígio institucional, insiste em se fazer presente. Há, portanto, uma camada metalinguística na encenação: a própria existência dessa peça é um testemunho do espírito mambembe que o espetáculo pretende retratar. Houve coro de “Sem Anistia”, que ecoou por todo o teatro, durante a apresentação.
Mas não se trata de um grupo qualquer. O elenco reúne nomes consagrados, como Cláudia Abreu, Deborah Evelyn, Julia Lemmertz, Paulo Betti e Orã Figueiredo (destaque do elenco), que deixam de lado o glamour televisivo para assumir o espírito errante e coletivo do teatro itinerante. Essa escolha não poderia ser mais simbólica: trata-se de uma volta às raízes, ao contato direto com o público, à precariedade transformada em potência.
A nova versão mantém o cerne do texto original, mas com adaptações necessárias aos tempos atuais. Questões de gênero e poder foram revisitadas para que a peça não apenas ressoe no presente, mas dialogue com os desafios da contemporaneidade. No palco, a personagem Laudelina, antes uma vítima de assédio, agora impõe respeito e luta por seus direitos. A frase “não é não” foi incorporada ao espetáculo, ressignificando sua narrativa e reforçando a necessidade de mudanças na sociedade. Ao atualizar esses aspectos, a montagem evita cair no anacronismo e torna a trama ainda mais pertinente para o público contemporâneo.
Questões de gênero e poder foram revisitadas para que a peça não apenas ressoe no presente, mas dialogue com os desafios da contemporaneidade.
Outro ponto importante da peça é a sua concepção estética. A cenografia minimalista privilegia a versatilidade, permitindo que os poucos elementos de cena sejam transformados em múltiplos espaços e situações. Essa abordagem reforça a ideia de um teatro ágil, adaptável e econômico, condizente com a tradição mambembe. Os figurinos dialogam com essa proposta, misturando referências históricas e contemporâneas para criar um visual atemporal. A trilha sonora, composta por Caio Padilha, acrescenta um componente regional e popular à encenação, evocando ritmos e sonoridades que dialogam com o percurso itinerante do grupo.
Mais do que uma peça sobre o teatro, Os Mambembes é uma celebração da própria essência do fazer teatral. Esse desprendimento, raro em tempos de estrelato instantâneo, traduz o que significa ser artista: estar disponível para o inesperado, para o desafio.
Além da entrega dos atores, o espetáculo se destaca por sua capacidade de se reinventar a cada apresentação. Como qualquer peça itinerante, Os Mambembes precisa lidar com diferentes espaços, públicos e imprevistos. O ambiente externo adiciona camadas inesperadas à encenação: o barulho da cidade, a reação espontânea da plateia, o imprevisível que se torna parte do espetáculo.
Curiosamente, embora a montagem tenha sido pensada para ser apresentada ao ar livre, em praças e espaços públicos, em Curitiba foi encenada em um teatro fechado. Essa mudança trouxe uma nova dinâmica à peça, conferindo-lhe um caráter mais introspectivo e formal, o que pode ter impactado seu ritmo e espontaneidade. A experiência, contudo, reafirmou a versatilidade do espetáculo, que se molda ao espaço disponível sem perder sua identidade itinerante.
A apresentação de estreia em Curitiba deixou claro que o teatro segue vivo porque há quem insista em levá-lo adiante, mesmo quando tudo conspira contra. Os Mambembes não é apenas um espetáculo, mas um manifesto pela arte e pela necessidade de contar histórias. Ontem, no Festival de Curitiba, essa necessidade ficou mais evidente do que nunca. O teatro, afinal, não é apenas um ofício; é um chamado, uma vocação, uma forma de resistência. E, enquanto houver quem acredite nele, o espetáculo continuará.
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