Vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2023, Oppenheimer, de Christopher Nolan, propôs um mergulho na mente do físico J. Robert Oppenheimer, o líder do projeto que resultou na criação da bomba atômica. Refletir sobre este fato é um tema e tanto: o que teria motivado um sujeito a trabalhar em uma tecnologia que visava a destruição da humanidade?
Mas engana-se quem acha que essa é uma intriga recente. Em 1963, Kurt Vonnegut, o mais genial entre os autores satíricos americanos, já imaginava o que se passava na mente daquele que foi responsável por criar algo capaz de causar o fim do mundo. Esse é o assunto inicial de seu clássico Cama de Gato (editora Aleph, 2025, tradução de Livia Koeppl), o divertido (e desesperador) romance em que o escritor, com seu humor característico, busca significar o assombro causado pela detonação de “Little Boy”, a Bomba de Hiroshima, em 1945.
Em sua ficção, Vonnegut imagina que esse projeto teria nascido da mente de um gênio da ciência, o doutor Felix Hoenikker (certamente, sua versão de Oppenheimer), vencedor do prêmio Nobel. Sua personalidade, conforme descrita na narrativa, é uma mistura entre uma criança e alguém que talvez hoje se encaixasse no espectro autista: Hoenikker não se interessa exatamente por pessoas e sim pelos seus poucos hiperfocos.
Por trás de sua aparente leveza cômica, Cama de Gato nos entrega uma questão filosófica: no que podemos nos segurar quando aquilo que supostamente viria para nos salvar é usado para nos matar?
Mas, ao início de Cama de Gato, Hoenikker já está falecido, e o escritor-narrador quer descobrir quem foi ele a partir do contato com seus filhos: o anão Newt, a altíssima Angela e o desmiolado Frank. Com isso, seu plano é escrever um livro chamado “O Dia em que o Mundo Acabou”.
As críticas são perspicazes, e tratadas com a morbidez cômica do estilo de Vonnegut que ninguém mais conseguiu imitar. Como pode uma pessoa imatura como Felix Hoenikker, incapaz de se conectar com outros indíviduos, ser estimulada (e laureada) pela criação de uma arma de destruição?
A banalidade da tecnologia e da ciência se repete enquanto assunto cabeludo, difícil de ser enfrentado. Hoenikker, um homem do seu tempo, representa o ideal das evidências científicas como a ideologia de nos libertaria das trevas (uma das frases mais conhecidas do romance é essa: “a ciência é a magia que funciona”).
Ao mesmo tempo, este homem, no momento em que a bomba explodiu, estava ocupado fazendo uma cama de gato, uma brincadeira infantil que consiste em fazer uma série de tramas com um barbante entre os dedos. O fim do mundo é gestado pela mente de um ser amoral, incapaz de refletir sobre as consequências de seu feito (ideia que se destaca neste outro trecho marcante, narrado pelo filho de Hoenikker: “‘A ciência agora conheceu o pecado’. E sabe o que o Pai disse? Ele disse: ‘O que é pecado?'”).
Por trás de sua aparente leveza cômica, Cama de Gato nos entrega uma questão profundamente filosófica: no que podemos nos segurar quando aquilo que supostamente viria para nos salvar (os avanços científicos) é usado para nos matar?
‘Cama de Gato’: ciência e religião como irmãs

Como nas demais obras de Kurt Vonnegut, Cama de Gato conquistou legiões de leitores justamente pelas capacidade desse grande escritor de nos entregar obras cômicas de ficção científica, sempre focadas em temas espinhosos e de incontestável interesse coletivo. Ele mesmo ex-combatente na Segunda Guerra Mundial, Vonnegut foi capturado pelos alemães e, quando finalmente voltou aos Estados Unidos, virou um combativo ativista antibélico.
Neste que está entre os seus livros mais conhecidos (provavelmente ficando atrás apenas de Matadouro Cinco e Café da Manhã dos Campeões), o autor ainda explora outro tema controverso: a sedução das religiões. No cenário visitado por Vonnegut, em que a ciência é tida como deus, ela ainda divide espaço com outra irmã – uma hilária religião imaginada por Vonnegut, chamada Bokonismo.
Os bokonistas dividem percepções sobre a vida elaboradas a partir dos livros de Bokonon, um sujeito que teria parado na fictícia ilha de San Lorenzo e criado essa filosofia algo cínica, paradoxalmente crente e niilista. Ao parar na ilha por uma série de coincidências, o narrador vai se aprofundar cada vez mais em um cenário em que a pobreza convive com o poder e a fé – essa última, talvez o último bálsamo possível quando já perdemos tudo.
Provocante, incômodo, mas profundamente engraçado, o clássico de Kurt Vonnegut cria triplex imaginários na cabeça do leitor. Tal como a brincadeira que dá nome ao livro (“Onde está a cama? Onde está o gato”), ele planta dúvidas e se recusa a dar respostas.
CAMA DE GATO | Kurt Vonnegut
Editora: Aleph;
Tradução: Livia Koeppl;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Março, 2025 (2ª edição).
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