Sucesso na Netflix, a série O Eternauta tem assombrado espectadores no mundo todo que conferem a ficção científica estrelada por Ricardo Darín. Mas engana-se quem pensa que esta é uma história nova. Foi em 1957 que os argentinos conheceram pela primeira El Eternauta, HQ que, nas próximas décadas, se tornaria fundamental no imaginário portenho.
Escrita por Héctor Germán Oesterheld e desenhada, em sua primeira versão, por Francisco Solano López, levou aos leitores da revista Hora Cero Semanal uma trama distópica que vislumbra um cenário sombrio no país, quando uma nevasca mortal cai nas ruas das cidades e isola os poucos sobreviventes.
Os quadrinhos foram publicados em dois momentos: entre 1957 e 1959, na Hora Cero Semanal, e depois, em uma nova versão feita em 1969, na revista Gente (uma espécie de Caras argentina). Curiosamente, na nova versão, a trama ganhou contornos mais pesados e políticos – destoando completamente do perfil do veículo em que foi incluída.
Ainda assim, O Eternauta rumava para ocupar um posto definitivo na cultura e na vida social dos argentinos. E isso ocorreu não apenas pela narrativa desta HQ, mas também pelo destino trágico de seu criador. Militante político, Héctor Oesterheld desapareceu em 1977, junto de suas quatro filhas (duas delas estavam grávidas). Todos participavam do grupo Montoneros, organização que fazia frente contra a ditadura militar na Argentina.
Agora, com o lançamento da série da Netflix, a obra encontra um novo público no mundo todo. Para entender sobre a importância da criação de Oesterheld para a cultura portenha, entrevistamos Fabio Bortolazzo. Ele é professor, mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisador e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) com a tese “Notícias de uma invasão – um estudo sobre El Eternauta, de Héctor Germán Oesterheld”.
Escotilha » O Eternauta foi publicado inicialmente em 1957, e refletia algumas influências do contexto político mundial da época. Quais eram elas e como apareciam na HQ? E quais eram as tensões na Argentina que eram sinalizadas na história contada em O Eternauta?
Fabio Bortolazzo » Em 1957, o mundo vivia o início da Guerra Fria e o pânico nuclear, e isso aparece bem no início do Eternauta, quando o grupo inicial ouve pelo rádio a notícia de testes nucleares e em seguida associa com a nevasca. Alguns episódios depois, também pelo rádio, o grupo ouve que os países do norte não ajudarão a América Latina a lidar com a invasão.
No fim das contas, está se falando, de forma indireta, do apoio imperialista ao golpe que derruba Perón, dois anos antes, em 1955. Quem comanda a invasão em O Eternauta nunca aparece, mas não quero dar spoiler pra quem está assistindo a série.
“O Eternauta é a primeira história de invasão alienígena que acontece em uma cidade latino-americana, e colocar o sul do mundo no mapa da ficção científica não é pouca coisa”
Fabio Bortolazzo
Enfim, acho que mais do que o contexto global, O Eternauta lida com um contexto político local. Um dos momentos mais absurdos desse golpe de 1955 foi um bombardeio, durante um discurso de Perón, em que militares amotinados simplesmente sobrevoaram e bombardearam a Plaza de Mayo lotada de gente. Muitos mortos, muita destruição, e se você procurar fotos desse atentado, vai ver o quanto as imagens são similares ao cenário do Eternauta.
Héctor Oesterheld, como a maioria dos intelectuais portenhos da época, era antiperonista, mas como um cidadão sensível aos acontecimentos, certamente ficou chocado com a forma como os militares derrubaram o então presidente. Acho que esse clima de golpe, violência e destruição inspiram a alegoria presente em O Eternauta.
Dizem que é uma história em quadrinhos profética, mas a verdade é que a primeira versão, dos anos 50, retrata um momento histórico da Argentina, capta um clima de época, da mesma forma que um livro publicado no mesmo ano, Operação Massacre, de Rodolfo Walsh. Oesterheld e Walsh, aliás, têm trajetórias muito parecidas.
Segundo a sua pesquisa, o tom da segunda versão de O Eternauta, publicado em 1969, era bem mais político em relação à primeira, publicada entre 1957 e 1959. O que mudou?
A segunda versão de O Eternauta tem como diferença, em primeiro lugar, a mudança estética. O desenhista não é o figurativo Solano López, mas Alberto Breccia, que passava por uma fase de experimentação gráfica e transforma a aventura dos anos 50 em uma fábula de terror expressionista.
A segunda grande diferença é o engajamento político de Oesterheld. A política imperialista e a traição das grandes potências é explicitada na história, não é mais sugerida ou alegórica. A terceira diferença tem a ver com a circulação. Em 1957, O Eternauta foi publicado na revista Hora Cero, da editora Frontera, e o editor era o próprio Héctor Oesterheld. Em 1969, a história é publicada em Gente, uma revista de variedades, uma espécie de “Caras” da época, voltada a um público muito diferente.
Esse público estranha muito a segunda versão do Eternauta, especialmente a arte de Breccia, e a série acaba durando muito menos tempo que a primeira versão. É possível que o tom de denúncia e o engajamento político tenham incomodado os leitores e editores. Um ano antes, em 1968, Oesterheld, Alberto e Enrique Breccia tinham publicado Vida del Che, uma biografia ilustrada do líder da revolução cubana em que ele é retratado como uma figura heroica. Essa biografia colocou o roteirista no radar dos militares, que tinham voltado ao poder depois de outro golpe de estado.

No seu ensaio para o portal Matinal, você escreve: “O Eternauta é uma história de ficção científica em quadrinhos com um enorme potencial de significação e de diálogo com o presente. Desde 1957, quando foi publicada pela primeira vez, vem se expandindo, alcançando leitores de diferentes gerações que ainda se impressionam com uma estranha nevasca e com um sinistro grupo de invasores alienígenas”. Queria que você explicasse como a HQ se inseriu enquanto obra relevante da cultura argentina e portenha, e de que forma isso foi ocorrendo com o passar do tempo.
Existe um conceito da teoria do discurso que pode ajudar a entender porque O Eternauta se mantém relevante décadas depois de ter sido publicado pela primeira vez, o conceito de significante vazio. A nevasca, os cascarudos e os outros invasores alienígenas são significantes que podem e devem ser preenchidos pelo leitor. Se esse leitor quiser entender apenas como uma história de invasão alienígena, tudo bem, mas se quiser ir além, pode encontrar outros significados que preenchem esses significantes, e esses significados vão mudando no decorrer do tempo.
Esses significantes transformam a história em uma alegoria que vai sendo lida de formas diferentes. O kirchnerismo, por exemplo, tirou muito proveito desses significantes ao associar a figura de Néstor Kirchner à imagem de Juan Salvo caminhando na neve mortal. Criou-se um personagem, o Nestornauta, que se espalhou como estêncil pelos muros de Buenos Aires. A ideia era que a militância de Oesterheld correspondesse à de Néstor Kirchner e fosse capitalizada para eleger Cristina Kirchner.

Esse é só um dos exemplos de ressignificação. O próprio Oesterheld incentivou uma leitura comprometida ideologicamente. De qualquer forma, há um encanto especial para o leitor da primeira versão e que permanece: era a primeira vez que esse leitor via a própria cidade invadida por extraterrestres, que até então só invadiam capitais europeias ou norte-americanas… O Eternauta é a primeira história de invasão alienígena que acontece em uma cidade latino-americana, e colocar o sul do mundo no mapa da ficção científica não é pouca coisa.
Como especialista no trabalho de Héctor Oesterheld, quais são as tuas principais impressões sobre a adaptação da Netflix?
Bom, sobre a série da Netflix, acho que é importante observar que só temos acesso a 6 episódios. É muito pouco pra fazer qualquer juízo de valor. Esses seis episódios dão conta de uma pequena parte da trama.
No meu primeiro contato com a história em quadrinhos, a pergunta que eu me fiz foi: o que significa essa palavra, “eternauta”? É fácil de entender quando se lê a história, principalmente porque o sentido é dado nas primeiras páginas, ao contrário da adaptação para o streaming. O eternauta é um viajante da eternidade, um personagem com uma temporalidade própria, que vive um tempo circular. Chamo atenção pra isso pra que, quando for revelado – já tem pistas no sexto episódio – ninguém diga que foi surpresa. Está no título.
E como o tempo é um dos temas principais, me parece que foi uma boa escolha do diretor, Bruno Stagnaro, a de manter o ritmo lento do original. Se você levar em conta que cada episódio ocupava três páginas e foi publicado, semanalmente, durante dois anos, dá pra se ter uma ideia do tamanho dessa história e da quantidade de acontecimentos que estão por vir.
Outro acerto foi ter chamado Ricardo Darín para fazer Juan Salvo. Ele não é parecido com o Juan Salvo original, nem física e nem emocionalmente. É um acerto porque esse personagem, um homem de classe média totalmente comum, é um significante vazio. Ele se adapta ao significado e tem a aparência que o leitor quiser dar a ele, que pode ser a de Darín. É uma jogada comercial, Ricardo Darín é “a cara” do cinema argentino, mas isso não altera a essência do original. O quadrinho é um tipo de literatura popular, e a série também pode ser.
Um último ponto que me agradou muito: manteve-se o elogio, por assim dizer, à “cultura do arame”. Tudo é improvisado, caseiro, as máscaras, os trajes, as armas, as formas de comunicação e de deslocamento pela cidade. Essa improvisação, essa criatividade, esse fazer muito com o pouco que se tem, é muito argentino, muito latino-americano.
Tem muito mais coisa pra se dizer sobre a série, mas acho melhor guardar para os próximos episódios.
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