No celebrado livro Cama de Gato, Kurt Vonnegut descreve o bokonismo, a religião à qual seria adepto. Baseada nos princípios de um sujeito (inventado, claro) chamado Bokonon, o bokonismo teria como um dos seus princípios a existência do karass, que ocorre quando um grupo de pessoas são interligadas por um propósito divino, embora sua conexão não seja óbvia. “Se você encontrar seu karass, não importa onde você esteja – você está em casa”, escreve Vonnegut.
Ao ler o livro de memórias John, Yoko e Eu – Um Retrato Íntimo e Revelador do Casal Mais Célebre do Planeta (editora Sextante, 2025, tradução de Fabiano Moraes), é difícil de imaginar que seu autor, o radialista e consultor de mídia Elliot Mintz, não tenha sido parte do karass de um dos casais mais importantes da música e da cultura mundiais. Só isso parece explicar por que Mintz, em 1971, deixou que uma entrevista feita com Yoko Ono para o seu programa de rádio desse origem a uma relação (amizade seria uma palavra simples demais para descrevê-la) que se estende até os dias de hoje.
Ao longo dos primeiros dez anos (até Lennon ser assassinado de 8 de dezembro de 1980, em frente ao edifício Dakota), Mintz se prestou a servir a um casal em uma função que poderia ser descrita entre um auxiliar, um amigo, um familiar, um confidente e um servo. Após entrevistar Yoko (até então, ela se ressentia de jamais ser ouvida pelos jornalistas sem que fosse sobre John), ele se deslumbra quando a artista começa a fazer ligações para a sua casa para conversar – muito mais para falar do que para ouvir. Não importava o horário: Yoko poderia ligar de madrugada, e raramente se despedia.
Em seguida, essas ligações passam a se estender a John Lennon. É até difícil de imaginar qual deve ser a sensação de começar a receber alguma atenção e formar intimidade com um dos Beatles – e não qualquer um, mas com o próprio John Lennon. O fato é que o casal vai se integrando à vida de Mintz, que passa a operar como uma espécie de assistente de suas vontades e necessidades.
Inicialmente secreta, essa “amizade” dos três se tornou um tipo de trabalho, com Mintz viajando o país e o mundo para encontrá-los – inclusive passou uma temporada com o casal e o filho Sean no Japão. Cinquenta anos depois, ele parece ter chegado ao momento de compartilhar com o mundo as suas histórias extraordinárias. O que se ganha em John, Yoko e Eu são relances sensacionais sobre quem foram essas duas pessoas que chegaram ao topo da fama, e que guardavam também um alto grau de sofrimento em suas existências.
‘John, Yoko e Eu’ e as revelações sobre o maior casal da música pop

Ao longo das 224 páginas do livro, temos contato com a visão ora idealizada, ora excessivamente franca de Elliot Mintz sobre a dupla a quem dedicava boa parte de seu tempo – em uma disponibilidade que apenas aumentava. Essa convivência dá margem para que ele entregue detalhes importantes sobre a personalidade de ambos para além dos holofotes que os atingiam de modo permanente.
A simbiose do casal é ao mesmo tempo luminosa e doentia. O músico dos Beatles é descrito como alguém que conheceu a fama muito cedo e que, por isso, nunca se envolveu em quaisquer tarefas da vida cotidiana normal, como mandar uma carta nos correios ou comprar um bilhete de avião. Toda a sua rotina era administrada pela meticulosa e silenciosa Yoko, que foi responsável por transformar o seu legado em um grande negócio que sustentava a família.
Ao longo das 224 páginas do livro, temos contato com a visão ora idealizada, ora excessivamente franca de Elliot Mintz sobre a dupla a quem dedicava boa parte de seu tempo.
John Lennon é apontado como um ser humano complexo, repleto de luz e sombras. Adepto de ideais pacifistas, ele era, ao mesmo tempo, um homem violento e cheio de raiva. Este lado se revelava principalmente quando ele consumia álcool – e Mintz testemunha pelo menos duas cenas em que o vê revestido das suas piores facetas.
Por conta disso, Yoko o encarrega como seu cuidador em vários momentos, como quando o expulsa de casa. Os dezoito meses em que ficaram separados (Lennon foi morar em Los Angeles e Yoko permaneceu em Nova York) ficaram conhecidos como o “fim de semana perdido” na vida de John.

Estes quase dois anos, que são um período famoso na biografia do músico, ganham novas luzes a partir da experiência de Elliot Mintz, que estava na sua cola. Lennon vivia então com a assistente May Pang, que havia sido contratada pela própria Yoko (a boataria é que ela teria “escolhido” uma amante para o marido para ter mais controle sobre a situação).
De acordo com Mintz, não é real a versão propagada por May Pang sobre uma história de amor entre os dois que teria sido interrompida por Yoko com a ajuda de um hipnólogo. O radialista conta que John – que chamava a esposa de “Mãe” – tentava voltar para Yoko e pedia que Mintz intercedesse a seu favor, o que ele recusava fazer. Dezoito meses e um álbum (Mind Games) depois, em 1975, o casal se reconcilia em definitivo e logo engravidam do filho Sean, em uma gestação muito desejada pelos dois.
Mas o que fica claro ao longo da obra é que John e Yoko eram pessoas, no mínimo, peculiares. Dentre as revelações mais assombrosas, está o fato de que ambos eram obcecados pela forma física e pelo peso, e que mantinham em casa uma grande quantidade de roupas para usar quando estivessem mais magros. A amizade de Mintz com John Lennon começa, inclusive, quando o cantor o procura pedindo por injeções para emagrecer.
Yoko, por outro lado, contratava uma rede de videntes que consultava e não tomava qualquer decisão importante sem consultá-los. Um dos momentos mais marcantes do livro é quando Elliot questiona se eles não haviam previsto que John seria assassinado. Yoko teria dito que sim – e, em certo momento, dá a entender que sua morte havia sido prevista por uma vidente grega, que teria dito que ele seria assassinado em uma ilha (ele foi morto na frente do edifício Dakota, que fica na ilha de Manhattan, em Nova York).
Por fim, em certos momentos, Elliot Mintz se interroga sobre qual teria sido a sua vida se não tivesse cruzado com o casal em 1971 – mas, mais do que isso, se tivesse colocado mais limites na relação com John e Yoko. “Se eu tivesse aprendido a dizer não, poderia ter (vivido) uma existência mais equilibrada e tradicional. Eu poderia ter me casado, tido filhos”, escreve. Ao invés de tudo isso, ele teve experiências dignas de um livro. Mas talvez fosse apenas o karass.
JOHN, YOKO E EU | Elliot Mintz
Editora: Sextante;
Tradução: Fabiano Moraes;
Tamanho: 224 págs.;
Lançamento: Abril, 2025.
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