Ao longo de Aka Charlie Sheen, série documental em duas partes da Netflix, acompanhamos o testemunho de Chuck Lorre, o criador da série de comédia milionária Two and a Half Men, que foi produzida pela CBS entre 2003 e 2015. Sua proposta inicial, Lorre conta, era criar uma história a partir de dois irmãos contrastantes: um deles seria como Jó, o personagem bíblico, um sujeito a quem tudo sempre dava errado. Já o outro seria uma personificação de Dionisio, um beberrão bon vivant, a quem é reservado todos os prazeres da vida.
Já assisti a episódios de Two and a Half Men centenas de vezes e, embora seja uma série bem engraçada, sempre a achei meio triste. Havia algo de profundamente quebrado em Charlie Harper, o sujeito dionisíaco que, embora tivesse todos os seus desejos mundanos atendidos, guardava em si uma angústia quase sempre expressa pelas reclamações de que havia sido abandonado pela mãe. Talvez uma das explicações sobre por que sentia isso esteja no fato de ele ter sido vivido por Charlie Sheen – uma celebridade que, como acompanhamos na mídia por décadas, tem ele mesmo muitos contornos trágicos.
A série documental da Netflix, dirigida por Andrew Renzi, é um longo depoimento de Sheen e das pessoas que participaram da sua vida (tanto na ascensão quanto na queda) ao longo dos seus sessenta anos. Todas, aliás, são indivíduos prejudicados e traumatizados pelo seu vício em drogas, que quase acabou com a sua carreira e até com a sua vida. O ator, por uma espécie de milagre, segue por aqui e continua desfrutando dos louros da fama.
Uma mea culpa de uma estrela da televisão
Pode-se dizer que, mesmo que não tenha exatamente um fundo moralista, Aka Charlie Sheen é profundamente triste, embora engraçado em certos momentos. Mas, sobretudo, é impressionante assistir à jornada gloriosa de Charlie Sheen pela vida – que não tem nada de heroica, e parece ter mais a ver com sorte, o chamado “nascer com o bumbum virado para a lua”. A começar pelo fato de que Charlie – que foi batizado como Carlos Estevez – é um nepobaby: é filho de Martin Sheen, um dos mais respeitados atores de sua geração.
Sua ventura já começou no momento do nascimento. Na sua lenda pessoal, Charlie Sheen conta na série que nasceu praticamente morto, e que seu pai, um católico fervoroso, chegou a ir atrás de um padre para dar a extrema-unção. Mas ele vingou, e cresceu em uma família amorosa, ao lado de mais três irmãos (um deles, o também ator Emilio Estevez, que teve bem menos sucesso na carreira). Esse aspecto highlander se repetiria ao longo de sua vida toda.
Sem dúvida, o trunfo de Aka Charlie Sheen é trazer o testemunho do homem em si sobre as principais polêmicas de sua carreira, com uma admirável franqueza.
A carreira do pai, aliás, influenciaria profundamente os rumos da sua vida. E um dos acontecimentos mais impactantes em sua infância foi quando o pai levou os filhos para as Filipinas, para que acompanhassem as gravações de Apocalypse Now, o clássico de Francis Ford Coppola, que Martin Sheen protagonizava. Então com 9 anos, Charlie assistiria ali a seu pai passar por crises pelo consumo de álcool e até sofrer um infarto.
Não se sabe exatamente o que essa cena pode ter provocado no pequeno Carlos, mas o fato é que, logo depois de se tornar uma sensação (o que aconteceu muito cedo: ele já chamou a atenção pelo pequeno papel que conseguiu em Curtindo a Vida Adoidado, quando tinha apenas 20 anos), não demoraria muito para que o vício se apresentasse como uma constante em sua vida.
Em 1992, ele consumiria crack pela primeira vez por intermédio de uma namorada que dividia com o ator C. Thomas Howell, no momento em que recebia sexo oral (ela, inclusive, acabaria morrendo de overdose). A descrição dessa memória e da sensação provocada pela droga é tão forte que – pasme – esse se torna o único momento em que Sheen parece realmente se emocionar durante os dois episódios da série documental.

Isso não acontece nem nos momentos em que ele se confronta com outros dramas, como os passados pelo seu pai, que claramente o retirou do inferno diversas vezes (Martin Sheen e Emilio Estevez não quiseram dar depoimentos, e há rumores de que ambos tenham se ofendido pela exposição da família); pelas ex-mulheres, Denise Richards e Brooke Mueller, que parecem ter passado o cão ao lado dele; ou quando Jon Cryer, a co-estrela de Two and a Half Men, se mostra claramente ressentido quanto ao que perdeu quando Sheen resolveu abandonar uma série que gerava uma carreira para muita gente.
Sem dúvida, o trunfo de Aka Charlie Sheen é trazer o testemunho do homem em si sobre as principais polêmicas de sua carreira, com uma admirável franqueza. Há, contudo, vários resvalos numa abordagem sensacionalista, nos momentos em que aposta em afirmações “bombásticas” (quando fala sobre ter se descoberto HIV+ ou quando discorre, claramente desconfortável e por metáforas, sobre o fato de ter feito sexo com homens) e opta por deixá-las para os minutos finais da série, no intuito de prender o espectador até ali.
Mas, de modo geral, a sensação que fica é que a parte mais importante de Aka Charlie Sheen é deixar claro – menos pelo que Sheen diz, e mais pelo que o documentário mostra – de que muito dinheiro na mão de gente inconsequente quase sempre é sinônimo de tragédia. E que as drogas, quando se tornam um problema, causam mais danos no entorno do que na vida de quem tem o vício. Está aí Charlie Sheen, aos 60 anos e sem grandes remorsos, para provar.
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