Há livros que sangram, há outros que ensinam a sangrar com dignidade. Visceral (Editora Moinhos, 2025; trad. Silvia Massimini Felix), da equatoriana María Fernanda Ampuero, é um pouco dos dois. O título não é metáfora — é anatomia. Ampuero escreve com o estômago e o fígado, com a bile acumulada de séculos de abuso. Suas páginas parecem escritas com o corpo de quem sobreviveu à história e agora exige que ela, a história, sangre também.
O livro é composto de textos curtos — híbridos de ensaio, crônica e ficção — que formam uma constelação de vozes femininas em estado de alerta. Cada um deles é um pedaço de carne lançado sobre a mesa da civilização. O leitor lê como quem observa uma autópsia emocional: há medo, raiva, lucidez, ternura. E há uma recusa feroz em fazer da dor um espetáculo.
María Fernanda Ampuero pertence a uma linhagem de escritoras latino-americanas — Pizarnik, Lispector, Schweblin, Mariana Enriquez — que transformaram o íntimo em terreno de insurgência. Mas enquanto muitas se voltam ao delírio ou ao sonho, ela prefere o golpe seco, a verdade como lâmina. Em Visceral, o trauma não é metáfora: é ferida aberta, colônia exposta, corpo em ruína.
O que a diferencia, porém, é o rigor com que dá forma a essa brutalidade. Sua escrita pulsa em frases curtas, de respiração entrecortada, como se cada ponto final fosse um espasmo. Ampuero entende, talvez melhor que ninguém, o que Antonio Candido formulou ao longo de sua obra como uma espécie de “organização da experiência em forma”: transformar o caos social e psíquico em linguagem capaz de devolver humanidade ao que foi desumanizado.

A autora parte de episódios concretos — o aborto criminalizado, o feminicídio, o racismo, a herança colonial —, mas não busca a catarse pessoal. Busca a consciência. Em suas páginas, o “eu” é sempre um “nós” multiplicado: as mulheres pobres do Equador, as meninas violentadas, os corpos deixados para trás pela história. O sofrimento, em María Fernanda Ampuero, é social antes de ser individual. A literatura, portanto, é uma forma de reparação simbólica.
Há uma espiritualidade subterrânea nesse gesto. Em Visceral, Ampuero escreve como quem reza com os dentes cerrados. Sua prosa mistura fúria bíblica e ironia contemporânea. As referências a Maya Angelou, Clarice Lispector e Pizarnik surgem não como citações acadêmicas, mas como fantasmas que sussurram nas margens do texto. O resultado é uma escrita que se lê como exorcismo: íntima, política, impiedosa.
O sofrimento, em María Fernanda Ampuero, é social antes de ser individual. A literatura, portanto, é uma forma de reparação simbólica.
O “visceral” de Ampuero não é apenas o tema, mas o método. Seus contos e ensaios funcionam como necropsias narrativas, nos quais o corpo se torna o campo de batalha entre desejo e poder. A autora se recusa a ser decente — e é precisamente essa indecência que confere à sua prosa uma beleza impiedosa. Ela entende que, em tempos de extrema violência, o verdadeiro gesto estético é não suavizar.
A cada página do livro publicado pela Editora Moinhos fica clara a convicção da autora equatoriana de que a literatura é, antes de tudo, um direito humano. Ampuero escreve para garantir esse direito — o de existir como voz, corpo e fúria. Ela acredita que a arte pode humanizar, mas sabe que, para tanto, precisa encarar o inumano de frente.
Em seus melhores momentos, Visceral lembra o leitor de que a literatura ainda pode ferir — e, ao ferir, curar. Ampuero devolve à palavra o poder original: o de nomear o horror sem torná-lo banal. O resultado é uma obra que combina a ética do testemunho com a precisão do estilo.
No fundo, este é um livro sobre amor. Não o amor dócil, mas aquele que persiste nas ruínas. María Fernanda Ampuero escreve do ponto em que a civilização toca a barbárie e, ainda assim, insiste em encontrar, entre as vísceras, algum vestígio de beleza. Seu humanismo é o da ferida exposta — o único possível num mundo em que o silêncio é cúmplice.
VISCERAL | María Fernanda Ampuero
Editora: Moinhos;
Tradução: Silvia Massimini Felix;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Abril, 2025.
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