LUX não é um álbum que se consome: é um disco ao qual se se submete. Rosalía, que já havia se libertado da cartografia pop em Motomami, decide agora abandonar completamente a terra firme. O que entrega em seu quarto disco é uma obra que exige silêncio, foco e disposição para o estranhamento — e talvez seja justamente essa recusa em acomodar o ouvinte que torna LUX tão fascinante. Propositalmente difícil, monumental em escala e inegociável em sua visão, o registro parece feito não para agradar, mas para elevar — ou, ao menos, chacoalhar violentamente.
A abertura, “Sexo, Violencia y Llantas”, já explicita as regras desse jogo: a tensão entre o mundo e Deus, entre o corpo e o espírito, entre a violência e a redenção. “Quién pudiera vivir entre los dos / Primero amar el mundo y luego amar a Dios” (Se ao menos fosse possível viver entre os dois / Primeiro amar o mundo e depois amar a Deus) não é apenas um verso, mas um mote para o disco inteiro. Se Motomami girava em torno da carne, LUX parece ocupar o espaço onde carne e alma se atritam, se corroem e, às vezes, se iluminam mutuamente.
Essa fricção reaparece em “Reliquia”, canção em que Rosalía reencena a própria biografia como uma longa lista de perdas geográficas e emocionais — “Perdí mis manos en Jerez, mis ojos en Roma…” (Perdi as mãos em Jerez, os olhos em Roma…) — para afinal declarar que seu coração nunca lhe pertenceu. Ao se oferecer como “reliquia”, assume a figura paradoxal de santa pós-pop: uma mártir da mobilidade, do afeto e da exposição.
Em “Divinize”, talvez o manifesto mais claro do álbum, o corpo torna-se liturgia. “Through my body, you can see the light” (Através do meu corpo, você pode ver a luz) ela canta, transformando dor, orgulho e prazer em caminhos para o sublime. A divinização aqui é autoproduzida, física, erótica — e profundamente feminina. Rosalía parece compreender que o corpo é tanto sua prisão quanto sua passagem, e explora essa ambiguidade com coragem quase sacrílega.
Essa força do corpo reaparece amplificada na intensa “Porcelana”, onde a fragilidade da pele de porcelana convive com o verso em latim “Ego sum lux mundi” (Eu sou a luz do mundo), um gesto de grandeza iconoclasta que transita entre o sagrado e o melodramático sem jamais perder o controle. A cantora é, ao mesmo tempo, nada e luz do mundo — e o disco viverá dessa dialética até o fim.
LUX exige esforço, mas recompensa com amplitude. Não se trata de um álbum para consumo imediato; é para se atravessar.
Se há um ápice emocional aqui, ele é “Mio Cristo Piange Diamanti”, ópera miniaturizada onde um amor imperfeito é elevado à categoria de teologia pessoal. A pergunta devastadora — “Quanti pugni ti hanno dato / Che avrebbero dovuto essere abbracci?” (Quantos socos você levou / Que deveriam ter sido abraços?) — ecoa como um lamento universal sobre violência emocional. Rosalía transforma o amado em Cristo, mas um Cristo humano, ferido, falível.
Nada, porém, sintetiza melhor o espírito maximalista e caótico de LUX do que “Berghain”, onde Björk e Yves Tumor encarnam forças opostas de espiritualidade e violência. A fusão entre erotismo brutal e intervenção divina produz uma canção que parece escrita para um coliseu emocional — um ritual em que amor, fúria e transcendência lutam até o esgotamento.
Mas LUX não é feito apenas de grandiosidade. “La Perla” devolve Rosalía à terra para um retrato ferino de masculinidade tóxica: “La decepción local, rompecorazones nacional” (Decepção local, destruidor de corações nacional). A canção opera como catarse, humor afiado e ajuste de contas.
Em seguida, “Mundo Nuevo” e “De Madrugá” trabalham o desencanto e a vingança como forças espirituais. A madrugada, lugar de transição e de presságio, serve como espaço ritual para repactuar com as próprias sombras: “La cruz en el pecho calibra mi cuerpo / Para desquitarme yo tengo derecho” (A cruz no meu peito calibra meu corpo / Eu tenho o direito de me vingar).
Se Deus está em toda parte, em “Dios es un Stalker” Ele aparece não como divindade protetora, mas como obsessão, sombra, vigilância. Rosalía vira o jogo e encarna um Deus ciumento, invasivo — e é brilhante ao fazer isso sem perder o humor sinistro.
O álbum ganha novo fôlego em “La Yugular”, uma das composições mais literárias e delirantes que Rosalía já escreveu. O longo verso sobre escalas — “Yo quepo en el mundo / Y el mundo cabe en mí…” (Eu me encaixo no mundo / E o mundo se encaixa em mim…) — é um poema cosmogônico sobre a expansão do amor e da identidade até o limite do infinito.
Em “Sauvignon Blanc”, a renúncia ao luxo (ironia sempre presente, dado o título do álbum) é usada como gesto espiritual. “Mis Jimmy Choo yo las tiraré” (Vou jogar fora meus Jimmy Choos – grife britânica de sapatos de luxo) sinaliza não apenas abandono material, mas limpeza do excesso emocional.
O disco então alcança seu trecho mais humano e luminoso: “La Rumba del Perdón”, que traduz perdão como arma, ritual e redenção — mesmo diante de traições, sumiços e crimes. Rosalía transforma a moralidade em festa, celebrando a possibilidade de liberar o peso da mágoa.
“Memória” reprime o épico para abrir espaço ao íntimo: o medo do esquecimento, da dissolução da identidade, da morte simbólica. Com Carminho, Rosalía chega ao ponto mais vulnerável do álbum: “Quando eu morrer, peço só não esquecer o que vivi”.
O ciclo se encerra com “Magnolias”, um cortejo fúnebre e galáctico, onde Rosalía agradece à vida até por suas navalhadas. “Dios desciende y yo asciendo / Nos encontramos en el medio” (Deus desce e eu ascendo / Nos encontramos no meio): no encontro entre céu e carne, ela finalmente encontra descanso. A que renasce no fim do álbum é outra, mais leve, mais pó, mais estrela.
LUX exige esforço, mas recompensa com amplitude. Não se trata de um álbum para consumo imediato; é para se atravessar. Rosalía não quer que o ouvinte relaxe — quer que ele ascenda com ela. No fim, o disco prova que a arte pop ainda pode ser terreno de risco, beleza e transcendência. E confirma que Rosalía, longe de qualquer algoritmo, segue construindo uma obra que não se explica: se experimenta.
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