Agora há pouco, enquanto caminhava de volta para casa, sob uma garoa fina, daquelas que encharcam aos poucos, mas sem muita piedade, vi um casal de moradores em situação de rua dormindo debaixo de uma marquise, protegido por várias camadas de cobertas, sobre um colchão velho. Já passava do meio-dia, e os dois, alheios a tudo, deixavam a vida acontecer ao seu redor. E a poucos metros de uma canaleta, o tráfego ruidoso dos ônibus vermelhos não parecia perturbá-los.
Nada sei a respeito deles, portanto, prefiro não levantar suposições sobre o que os trouxe até ali, ou os mantém nessa condição, tão à margem, porém ao mesmo tempo completamente visíveis em um mundo que parece não se muito importar com eles. Embora suas presenças incontornáveis perturbem – e bastante – os que preferem uma versão higienizada da cidade. Os olhares de muitos passantes, e alguns poucos comentários que entreouvi, murmurados, denunciavam esses espasmos de intolerância hesitantes.
Em um exercício de alteridade, parei um instante, não muito longo, para observá-los. Pareciam desmaiados, imersos em uma dimensão paralela, com seus corpos meio entrelaçados. Talvez fossem mesmo um casal, ou o frio os tivesse aproximado. Visíveis, seus rostos não traziam quaisquer expressões. Abandono, dor, solidão, entorpecimento, marginalidade. Todas essas palavras emergiram, mas logo me dei conta que eram fruto de artimanhas da minha imaginação, povoada por suposições aleatórias, e pela tentação de criar-lhes narrativas, marcadas, provavelmente, por clichês, lugares comuns que às vezes se confirmam na realidade, mas também podem banalizá-la.
Nesse instante, eu me policiei. “Eles não são seus personagens”, disse a mim mesmo, um alerta quase em voz alta. Devem estar ainda lá, a pouco mais de uma quadra de onde moro, à minha revelia, sem saber que eu existo, ou que escrevo neste instante sobre eles sem lhes pedir permissão.
Abandono, dor, solidão, entorpecimento, marginalidade. Todas essas palavras emergiram, mas logo me dei conta que eram fruto de artimanhas da minha imaginação, povoada por suposições aleatórias, e pela tentação de criar-lhes narrativas, marcadas, provavelmente, por clichês, lugares comuns que às vezes se confirmam na realidade, mas também podem banalizá-la.
Em sua estática mansidão inconsciente, eles atravessaram o meu caminho, invadiram meus pensamentos, e seguem ecoando, porque talvez sejam evidências contundentes demais de uma desordem da qual, convenientemente, desviamos no dia a dia, e sobre a qual evitamos pensar muito a respeito.
Atribuir a eles um estado de infelicidade, apesar da aparente precariedade material, é outra tentação perigosa. Podem, sim, ser vítimas das condições sociais desfavoráveis em que talvez nasceram e cresceram, ou de decisões equivocadas feitas ao longo da vida, sabe-se lá. Mas talvez tenham escolhido estar ali, adormecidos enquanto a vida ruge em movimento ao seu redor. Eles devem incomodar muitos porque desafiam nossa lógica produtiva, acelerada.
Fato é que eles, desejem ou não quem os enxerga como uma dissonância indesejada, têm o direito de ali estar, em um espaço público, a existir, à revelia de tudo e de todos, de minhas ruminações. Mergulhados no que aparentava ser um sono profundo, me presentearam com o espirito de um tempo no qual estamos, eu e eles, irmanados, sob o mesmo céu, que nos cobre como os cobertores que os protege do frio de Curitiba.
Crédito da foto: Isabella Lanave.