O Rio de Janeiro exalava aquele cheiro inconfundível de maresia misturada à aspereza da creolina recém-derramada pelos porteiros nas calçadas. Uma química estranha — agridoce, doméstica, marítima. Eu e minha mãe ocupávamos o décimo andar de um prédio da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Dois quartos, uma sala apertada, uma cozinha mínima.
Meus pais haviam se separado há pouco — e, de súbito, o mundo encolheu. Não o mundo lá de fora, que seguia intacto, imenso, ao mesmo tempo colorido e feroz: ônibus abarrotados, buzinas, vendedores apressados, gente que atravessava as ruas como quem corre de si mesma. Esse mundo seguia inteiro, intacto em sua poética desordem. Mas o nosso — aquele pequeno território de louça, cortinas, geladeira vermelha e móveis antigos — esse, sim, ficou menor. E torto.
Lembro do nosso toca-discos Grundig girando um LPs do Chico, do Milton, às vezes do Stevie Wonder e Donna Summer, que pareciam soprar um pouco de alegria nos cantos do apartamento, onde o silêncio teimava em crescer. Minha mãe fazia o que podia para adiar o peso daquele silêncio.
Foi num desses dias, qualquer dia, em que a vida parece andar de lado, que, voltando do colégio, eu o vi, a pouco mais de uma quadra do meu prédio. E lá estava ele: o mar. Escondido, quase clandestino, surgindo tímido depois da muralha de prédios, como quem espia sem querer ser visto. Foi ali, olhando aquele fiapo azul de horizonte, que escrevi mentalmente meu primeiro poema. Era sobre o tempo.
“O tempo passa.
Não volta mais.”
Era só isso. Mas, de alguma maneira, era tudo.
Eu ainda não conhecia os filósofos. Não sabia de Heráclito, nem dos poetas que esculpem o tempo em pedra e verso. Mas bastava estar atento à cidade — bastava existir — pra entender. O tempo estava ali, evidente, no amarelo claro dos táxis que cruzavam a rua como setas, no vendedor de mate com seus barris metálicos reluzindo ao sol, no cheiro do pão francês subindo da padaria embaixo do edifício Atalaia, no letreiro luminoso do Jornal do Brasil piscando no alto de algum edifício.
Foi num desses dias, qualquer dia, em que a vida parece andar de lado, que, voltando do colégio, eu o vi, a pouco mais de uma quadra do meu prédio. E lá estava ele: o mar. Escondido, quase clandestino, surgindo tímido depois da muralha de prédios, como quem espia sem querer ser visto. Foi ali, olhando aquele fiapo azul de horizonte, que escrevi mentalmente meu primeiro poema. Era sobre o tempo.
“O tempo passa.
Não volta mais.”
O Rio ensinou cedo que tudo escorre. Que o sorvete derrete antes da terceira lambida. Que o pôr do sol na Pedra do Arpoador dura o tempo exato de um suspiro dourado, e avermelhado, antes de se dissolver. Que até o rumor das ondas se cala justo quando a gente mais precisa dele pra adormecer.
Rubem Braga escreveu, com a delicadeza que só ele tinha, que o Rio é “uma cidade que vive encostada no mar como quem encosta o corpo cansado num peito amigo”. E não poderia ser mais verdadeiro. Copacabana sempre me pareceu assim: meio linda, meio decadente; meio festa, meio ressaca; meio amor, meio mágoa — como gente que a gente ama sem saber direito se ama ou se perdoa.
Do décimo andar, eu via aquele emaranhado de concreto e fios rabiscando o céu, e entendia, sem saber que entendia, que o tempo não tem botão, nem freio, nem marcha à ré. Não sobe, não desce. O tempo anda pra frente — teimoso, impassível — como o ônibus 583, que eu pegava para ir até o apartamento de minha avó, sempre lotado, que jamais, ou quase nunca, parava no ponto certo.
O poema de menino, que depois ganhou as linhas do meu caderno, dizia, ainda sobre o tempo:
“Não sobe, não desce, não tem barreiras.
Quando ele chega, a tristeza chega,
e a alegria sai.”
E era isso. Porque o tempo é assim: meio grosseiro, sem muita cerimônia. Entra na nossa vida como quem invade um cômodo sem bater — move os móveis, troca as lâmpadas de lugar, leva o que quer: leva o pai pro outro lado da cidade, leva a casa pra dentro de dois quartos apertados, leva aquele jeito antigo que a gente tinha de morar no mundo.
Mas, se leva, também deixa. Deixa farelos. Rastros. Uma música que insiste em tocar na cabeça. A lembrança do livro escrito a quatro mãos com uma amiga nos degraus do colégio. A luz dourada refletindo, no fim da tarde, nas janelas empoeiradas de um prédio velho da Rua Rodolfo Dantas no caminho de volta pra casa.
E, sobretudo, deixa essa verdade simples, definitiva, irremediável:
O tempo passa.
E a gente passa com ele.
Dedico este texto aos meus pais e à minha querida amiga Isabella.
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