Se de um lado está o espontâneo representado pelo deus do vinho, do outro está o ofício de artífice figurado no deus da razão.
O fazer artístico é o resultado da luta entre as duas divindades. O fruto gerado por esse atrito é geralmente o produto que vai a público.
Revelar os detalhes desse confronto é a função dos documentários Pra Falar de Rap e Sem Ficção Nem Maquiagem, audiovisuais produzidos em Curitiba que têm em comum o fato de exibir o trabalho por trás do trabalho.
Em Pra Falar de Rap, o choque entre as divindades fica bastante evidente logo no começo do filme, desenvolvido como requisito para a conclusão de curso da jornalista Viviane Menosso. Ao falar da inspiração para compor, o niteroiense Black Alien se coloca como um escolhido inspirado pelo sagrado que catalisa esse poder para transmitir as suas mensagens. Já o paulistano Ogi diz levar bastante tempo para forjar e lapidar seu texto e sua levada.
Mas, embora as forças do deus que liga a embriaguez ao divino e as do responsável pelo equilíbrio estejam polarizadas quando os dois MCs falam da escrita, o documentário em si pende mais para o lado de Apolo. Bastante organizado, o filme é dividido em tópicos como gravação, produção, distribuição e divulgação, o que lhe dá um tom bastante técnico.
Esse formalismo está muito presente na fala de Sandrão (RZO), que parece não estar à vontade em frente às câmeras e adota um discurso engessado. Por outro lado, os demais entrevistados mostram maior desenvoltura ao tratar sobre a atividade que tanto conhecem, afinal são experientes e têm seu nome solidificado no rap nacional.
Mas, se além dos já citados, os MCs Sombra, Kamau e De Leve, os DJs KL Jay e Cia e o produtor Nave, único representante de Curitiba no projeto, discursam predominantemente sobre o método, uma face mais emotiva está presente na última parte, em que falam sobre qual é a razão pela qual escolheram o rap.
No entanto, se o vídeo que cumpre as normas formais de um TCC pende para o lado apolíneo, Sem Ficção Nem Maquiagem, que se refere ao CD de mesmo nome do MC curitibano Sujeito Sujo, é mais dionisíaco ao optar pela espontaneidade notada no tom informal dos entrevistados que falam sobre o processo de criação do disco.
‘É como se eu fosse um catalisador, uma antena. Eu agradeço a Deus o que sai no papel porque acho que é ele que tá mandando, eu só dou uma ajeitada.’
Gustavo Black Alien
Entretanto, se a temática pode soar monótona, afinal, ela é comum em outros gêneros, o grande ganho do mini-documentário é mostrar o que faz do rap o rap, explorando não só a técnica, mas também o envolvimento pessoal, expondo isso da maneira como diz o título: sem ficção nem maquiagem.
Assim, há a revelação de toda a correria para produzir um CD de rap independente de verdade e o necessário lado “sujo” para que o som chegue limpo aos ouvidos.
O que se espera é que o disco de mesmo nome seja um resultado bastante positivo, uma vez que o próprio documentário mostra que o processo é feito na força e na raça, mas também é necessária a habilidade e a técnica.
Dessa maneira, ambas as obras mostram que, mesmo sendo marginal, é preciso ser bem feito quando se quer alcançar o reconhecimento.