Recentemente, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) descobriu que 4% dos alunos do 9.º ano do ensino fundamental brasileiro foram vítimas de estupro. É a primeira vez que a pergunta “alguma vez na vida você foi forçado(a) a ter relação sexual?” foi feita no estudo, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento questionou 2,6 milhões de jovens do ensino público e privado sobre seus hábitos de saúde e comportamento. No total, 4,4% dos alunos estuprados estão nas escolas públicas e 2% no ensino privado. Destes, 3,7% são meninos, enquanto para as meninas o porcentual é de 4,3%. Em tempos em que se discute a cultura do estupro, é digno pensar que, embora em menor grau, o estupro entre meninos não é falado. Garotos não fazem isso com outros garotos.
Ou ao menos esse é o pensamento de um dos personagens da excepcional segunda temporada de American Crime, série do canal ABC que traz como proposta uma história diferente a cada ano, nos moldes de American Horror Story, mas sempre com foco em algum específico da cultura americana. Aqui, o suposto estupro de um adolescente em uma festa com alunos de uma escola de elite acaba levantando questões necessárias e apavorantes em uma sociedade cada vez mais cruel. Embora a série beba da ideia das produções de Ryan Murphy (inclusive tem quase o mesmo título de American Crime Story), a antologia da ABC tem um desafio maior: contar uma história provocativa e difícil para o público de televisão aberta. A audiência, como era de se esperar, não vem respondendo muito bem. A crítica, entretanto, não poupa elogios. American Crime é uma das indicadas ao Emmy 2016 na categoria melhor minissérie.
Taylor Blaine (Connor Jessup) é aluno bolsista de uma prestigiada escola particular. Certa noite, ele vai a uma festa do time de basquete, bebe além da conta e acaba sendo fotografado quase nu, coberto de vômito e vulnerável. As imagens acabam vazando na internet e a escola, para não perder o prestígio, suspende o garoto por tempo indeterminado. Anne (Lilli Taylor, incrível), a mãe do garoto, não se conforma e, após pressionar o filho sobre o que ocorreu na festa, acaba ouvindo algo perturbador: o garoto acredita ter sido estuprado por um dos seus colegas. Imediatamente, Anne vai até a escola, mas não encontra nenhum apoio. Para evitar uma crise, a diretora Leslie (Felicity Huffman) utiliza diversos subterfúgios para que o escândalo não chegue aos ouvidos da comunidade rica.
Para aqueles que viram a primeira temporada (disponível na Netflix), o segundo ano traz quase todos os mesmos atores, mas com uma história muito mais incômoda e próxima a todos nós. No decorrer dos episódios, aliás, esse incômodo torna-se quase insuportável, já que a série parece perguntar a cada frame: e se você estivesse lá? Dentro de uma elitizada escola particular americana, o criador John Ridley (vencedor do Oscar de melhor roteiro por 12 Anos de Escravidão) utiliza um único crime para explorar nossos preconceitos e mostrar de que forma nossas “opiniões” sobre raça, divisão de classe e gênero ditam nossas atitudes, empatia e interação com o próximo.
É uma televisão desconfortável falando de assuntos desconfortáveis.
De forma muito delicada, até mesmo o público mais desavisado percebe o esmero com o qual o roteiro é construído. Além do estupro masculino – que parece ser a discussão principal, mas vai além – a série vai se expandindo para mexer em feridas muito fechadas do modelo de vida americanizado e cheio de sonhos. Assim, vemos personagens escancarando o bullying com a certeza de que não serão punidos (mas se forem, os pais farão de tudo para protegê-los), vemos como a divulgação de assuntos privados em redes sociais pode ser devastador, vemos a hiperssexualização dos adolescentes ser discutida de forma crua e acompanhamos as grandes diferenças de lutas de uma escola particular, financiada por ricos investidores, e uma escola pública, que enfrenta não apenas a falta de recursos, mas uma guerra entre negros e latinos.
Em um grande acerto narrativo (que lembra bastante o filme Dúvida), não há verdades, nem resoluções fáceis e muito menos personagens que vão contar como a história aconteceu. Sem parecer cópia de outras produções, os estereótipos, aqui, são subvertidos. A família negra é preconceituosa e cheia de privilégios por terem dinheiro, o capitão do time de basquete não é o mais popular da escola e os adolescentes não são todos lindos e deslumbrantes. Todos mentem – inclusive a suposta vítima – ameaçam, atacam e vivem sob um teto de vidro muito frágil, sempre egoístas. Suas ações sempre têm por objetivo o benefício próprio.
Mas o que torna tudo tão intenso, interessante e cruel para o público é a câmera, que não deixa escapar um detalhe, nenhum julgamento. Em diversos momentos, está quase grudada no rosto dos personagens, enquanto ouvimos outros presentes na cena, mas sempre acompanhando as reações de cada detalhe na feição, do olhar, da forma de falar. Por isso, é extremamente difícil, por exemplo, acompanhar o exame médico do garoto enquanto a enfermeira explica como serão feitos os procedimentos, porque é possível sentir toda a dor do personagem quando a câmera não vira para o lado, não ignora o problema. Quando não está próxima, a mesma câmera se encontra sorrateira pelos cômodos das casas, como se estivéssemos testemunhando pequenos crimes que acontecem na vida real e nós continuamos ali, espectadores, comentadores, passivos. Uma espiada sobre as desgraça alheia.
Diversas tramas paralelas vão aparecendo e ajudam a compreender a narrativa principal. Todos esses enredos, embora às vezes pareçam desconexos, são compostos por difíceis realidades não apenas para os norte-americanos, mas para todos, em qualquer país. Desde a homofobia até divisão de classe, tudo é levado ao extremo, sem precisar apelar para dramas baratos. O soco é sempre muito seco, a trilha sonora é utilizada em momentos pontuais e o silêncio é usado para nos lembrar que a injustiça não vem com música bonita ao fundo. Tudo isso não seria possível sem um elenco incrível, que vão desde desde os jovens Connor Jessup, Joey Pollari e Trevor Jackson, até Felicity Hufmann (cínica ao extremo aqui), Lilli Taylor, o vencedor do Oscar Timothy Hutton e Regina King, ganhadora do Emmy no ano passado pela mesma série.
Os assuntos são levantados sempre de forma muito sutil e provocativa, já que os roteiristas não oferecem respostas, porque o objetivo é questionar. Assim, não há resolução, mas anti-clímax, algo raro em produtos feitos para canais abertos. A série prefere que o público ouça aqueles personagens para decidirmos quem somos nós e em quem acreditamos, baseando-se em nosso repertório de vida e nossos valores. Assim, somos instigados a entender que o ser humano é ambíguo e complexo e que, para alguns, é perfeitamente plausível reavaliar o suposto estupro apenas como um sexo mais agressivo. Afinal, o garoto gostava de violência. Ele pediu, repetem vários personagens.
Alcançando seu ápice no excelente oitavo episódio – com depoimentos reais de pessoas que passaram por traumas parecidos com os vistos na série, abrindo a discussão para atentados em escolas dos EUA -, American Crime não só entrega uma das temporadas mais duras e cruéis do ano, mas prova que a televisão aberta ainda respira e consegue produzir pequenas joias. Assim, American Crime redesenha percepções e questiona o quanto precisamos falar sobre assuntos delicados.
É uma televisão desconfortável falando de assuntos desconfortáveis. O que esse espelho está fazendo na sala mesmo?