Se você descobrisse que está com câncer em estágio avançado e que não há mais chance de cura, o que você faria? Provavelmente muitos de nós falariam sobre viagens, passar momentos com os parentes, comer tudo o que sempre quis. Mas para a protagonista de Morrendo Por Sexo, minissérie da Disney+, a resposta é mais original: ela resolve largar o marido para explorar a própria sexualidade, até então pouco vivida.
Ao descobrir que seu câncer de mama retornou e não há mais o que a medicina possa ofertar, Molly (Michelle Williams, mais uma vez provando porque é uma das grandes atrizes de sua geração) imediatamente toma decisões inusitadas. Ela sai e compra uma garrafa de refrigerante lixo de dois litros para se entupir de porcaria. Mas, mais importante, tem finalmente a coragem que lhe faltava para terminar o casamento com o marido (Jay Duplass), que assumiu o papel do seu cuidador e não consegue mais vê-la como sua mulher (leia-se aqui: não consegue mais fazer sexo com ela).
Talvez o mais fascinante aqui é saber que Morrendo Por Sexo parte da história real de Molly Kochan, que, ao descobrir que tinha câncer terminal em 2015, separou-se do marido e manteve inúmeras relações sexuais. Suas experiências foram tema para o podcast Dying for Sex, transmitido em 2020 com sua amiga Nikki Boyer. A Molly da vida real faleceu em 2019.
Ao conferir os oito episódios, é perfeitamente compreensível por que este podcast interessou a Disney a ponto de torná-lo em uma das séries mais emocionantes e originais dos últimos tempos. E a razão, claro, tem a ver com sexo – mas não só por isso.
‘Morrendo Por Sexo’: uma jornada feminina pelo prazer
Situando-se naquele gênero capaz de comover e fazer rir – a famigerada dramédia –, Morrendo Por Sexo, à primeira vista, pode parecer que será mais uma das tantas narrativas sobre pessoas que, à beira da morte, conseguem por fim dar atenção ao que realmente importa. Mas não é isso o que acontece aqui.
Por óbvio, na série, temos contato com o choque que só o confronto com a morte é capaz de proporcionar a qualquer ser vivo que se dê conta disso. Conforme já nos foi ensinado por tantas narrativas, há uma espécie de “acerto de contas” que supostamente nos libera de questões mais mundanas. Isso ocorre também na vida de Molly. Mas há algo de revolucionário quando uma mulher que sabe que vai morrer resolve procurar pelo prazer.
O que há de extraordinário nesta série é a coragem de abordar, com sensibilidade rara, a fluidez da sexualidade das mulheres.
Os dramas apresentados em sua história pouco (ou nada) têm a ver com o fim do seu casamento. Eles envolvem, na verdade, algumas das motivações desta mulher, que foi vitimada por um abuso sexual ainda criança e que destruiu a possibilidade de exploração de seu próprio corpo, além de dificultar a relação com a própria mãe (uma participação muito especial da atriz Sissy Spacek).
A jornada gloriosa que Molly resolve percorrer vai ser acompanhada não por um parceiro, mas por outras mulheres. A pessoa que está ao seu lado é a amiga Nikki (Jenni Slate). Mas há também a mãe, uma profissional do hospital (Esco Jouley), que atua como uma mistura de assistente social e terapeuta ocupacional e que é fundamental no seu processo, além das mulheres com câncer com quem ela divide as sessões de terapia coletiva.

O que há de extraordinário nesta série é a coragem de abordar, com sensibilidade rara, a fluidez da sexualidade das mulheres. A palavra coragem, neste contexto, é posta sob suspeita, pois demonstra algo que deveria ser óbvio para todo mundo: o quanto a maior parte das narrativas ficcionais que falam sobre sexo sempre evidenciam a ótica masculina.
A busca de Molly é tão tortuosa e prazerosa quanto a identidade sexual da maior parte das mulheres (ao menos, as que se permitem explorá-la). Ao encarar o próprio fim, ela finalmente se autoriza olhar para o que talvez, ao longo da vida, teve vergonha, como seus desejos por dominação e submissão, sua atração pelo kinky (um dos seus parceiros, que dá margem a algumas das cenas mais engraçadas da série, é um homem que quer ser tratado como cachorro).
Mas, acima de tudo, vale observar que sua sexualidade é muito pouco fálica, e se volta bem mais à sua vontade de investigar as sensações do corpo inteiro. Ou seja, estamos aqui a muitos quilômetros de distância da pornografia tradicional, focada no que, teoricamente, contempla o desejo masculino. O ápice da vida sexual de Molly, aliás, se dá quando ela encontra um parceiro que parece perfeito: um vizinho anônimo, também traumatizado, que sente prazer quando suas partes íntimas são chutadas (o papel inusitado é de Rob Delaney, de Deadpool 2).
E, por fim, há algo ainda mais revolucionário em Morrendo Por Sexo. Diferente do que foi ensinado às crianças (especialmente para as meninas), Molly parece encontrar a sua alma gêmea não em um homem, mas na sua amiga Nikki, que é a pessoa que irá deitar-se ao seu lado a cada internação no hospital, e que deve segurar a sua mão em seus instantes finais.
Mais do que uma história sobre sexo, a série da Disney+ acaba se revelando uma narrativa sobre o amor verdadeiro e o que realmente importa. Uma pérola escondida no mar dos catálogos de streaming e que merece ser valorizada.
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