O diretor Asghar Farhadi faz um cinema que divide opiniões. O Apartamento, que lhe deu neste ano seu segundo Oscar de melhor filme estrangeiro, tem muito em comum com A Separação, vencedor do mesmo prêmio em 2012: são obras realistas que retratam, com olhar cirúrgico, dramas da classe média de Teerã. Os personagens agonizam, como prisioneiros, em uma ordem social algo labiríntica, para a qual tentam, quase sempre em vão, encontrar uma saída. Quando retrata a vida privada, no entanto, o cineasta, também autor dos roteiros, espinha dorsal de seus longas-metragens, está a falar, nas entrelinhas, sobre o Irã contemporâneo.
No que podemos chamar de metáforas realistas, Farhadi destila, de maneira sutil, toda a sua desesperança, e contido rancor, em relação ao governo opressor de seu país. Temas como censura, intolerância, machismo, imposições religiosas e o desequilíbrio social são fios com os quais as tramas são tecidas, mas não aparentam ser o foco do diretor. É provável que seja uma estratégia para não bater de frente com o regime teocrático, instaurado no país em 1979, com a revolução islâmica.
Menos visualmente poético e intelectualmente desafiador do que um Abbas Kiarostami (de Gosto de Careja), e sem a urgência política de um Jafar Panahi (de Táxi Teerã), Farhadi tem uma gramática de mise-en-scène talvez menos complexa e inventiva do que a de alguns de seus conterrâneos. Por conta disso, parte da crítica lhe torce o nariz, considerando sua filmografia, que também inclui o belo O Passado, algo superestimada e convencional.
Em O Apartamento, melhor roteiro no Festival de Cannes no ano passado, Farhadi recorre à intertextualidade. Enquanto os personagens principais, o casal de atores Emad (Shahab Hosseini, melhor ator em Cannes) e Rana (Taraneh Alidoosti), ensaiam em Teerã uma montagem em persa do clássico A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, eles também lidam com uma situação traumática fora do palco.
Em O Apartamento, melhor roteiro no Festival de Cannes no ano passado, Farhadi recorre à intertextualidade.
Em uma noite na qual Emad, também professor do ensino médio, demora a retornar, um desconhecido entra no apartamento para o qual ele e a esposa se mudaram provisoriamente, e agride Rana. A razão por trás do ataque nunca é totalmente esclarecida – o que reforça a ideia de que o filme seja uma espécie de metáfora sobre o Irã, e não deva ser lido literalmente. É possível que o agressor a tenha confundido com uma mulher que ali vivia antes, e “recebia homens”. Ou seja uma represália ao fato de Rana ser uma atriz e, portanto, uma figura incômoda para setores mais conservadores e misóginos da sociedade.
A Morte do Caixeiro Viajante, escrita nos derradeiros anos da década de 1940, após a Segunda Guerra Mundial, é um texto incontornável da dramaturgia mundial que discute o fracasso, no âmago de uma família da classe média. É uma espécie de antítese do sonho americano, ao retratar o declínio de um vendedor, personagem vivido por Emad, que na vida real, apesar de ter dois empregos, mal consegue um lugar decente e seguro para viver e se vê diante de uma situação de incerteza, de ausência de perspectivas e de intensa hipocrisia social.
Farhadi, que não compareceu à cerimônia de entrega do Oscar em protesto ao governo do presidente Donald Trump, prefere a sutileza e busca retratar sua sociedade, colocando a câmera do lado de dentro, para falar de uma realidade que conhece bastante de perto, parte de microcosmos para construir um discurso que, apesar de contido, e aparentemente pessoal, tem grande potência e importantes implicações políticas.
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