Rita Lee: Mania de Você, documentário dirigido por Guido Goldberg e lançado pela plataforma Max, não se propõe a ser uma biografia convencional, tampouco um inventário exaustivo da carreira de uma das figuras mais emblemáticas da música brasileira. Ao contrário, o filme articula, por meio de uma dramaturgia da intimidade, um retrato sensível e fragmentado que privilegia a experiência afetiva sobre a cronologia factual. Ao tomar como ponto de partida não uma linha do tempo, mas os discos solo de Rita, o diretor estrutura a narrativa em torno de camadas emocionais e simbólicas, onde vida e obra se entrelaçam organicamente.
Logo na abertura, ouvimos a própria voz da cantora em uma das últimas gravações feitas em vida: uma reflexão serena e filosófica sobre a morte como retorno ao lar. A escolha desse trecho como introdução estabelece o tom meditativo e quase espiritual que atravessa toda a obra. Longe de configurar um lamento póstumo, o documentário se desenha como uma carta de amor — não apenas à artista, mas à mulher Rita Lee Jones, mãe, companheira, filha e amiga.
A estrutura do filme opera por associações livres. Cada disco evocado se torna um eixo temático a partir do qual se exploram episódios significativos da trajetória pessoal de Rita, como o início da parceria com Roberto de Carvalho, o nascimento dos filhos, momentos de crise e superação, prisões, conflitos com a censura e experiências com drogas. Essa opção formal — por vezes arriscada, mas coerente com o espírito indomável da homenageada — rompe com a lógica da linearidade histórica e convida o espectador a mergulhar numa espécie de fluxo de consciência audiovisual, onde a memória se apresenta em estado bruto, quase tátil.
Goldberg constrói essa tessitura sensível a partir de um impressionante acervo de arquivos pessoais: vídeos domésticos, fotos inéditas, cartas, desenhos e bilhetes trocados entre Rita e seus entes queridos. Mas é a costura desses materiais com os depoimentos — afetivos e espontâneos — de familiares e amigos que transforma o filme em algo mais do que um registro documental. A presença de figuras como Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Virginia Lee e Walter Casagrande ajuda a ampliar o retrato, mas é nos relatos dos filhos e, sobretudo, nas intervenções emocionadas de Roberto de Carvalho que a dimensão humana de Rita ganha densidade e complexidade. Em determinado momento, Roberto tenta ler uma carta escrita por Rita durante sua prisão e, tomado pela emoção, não consegue concluir. A câmera permanece, em silêncio, respeitando o luto e o amor em estado de exposição radical.
Essa exposição do íntimo, no entanto, nunca soa invasiva ou voyeurista. O filme é marcado por uma ética da delicadeza, que se revela tanto na edição — pontuada por silêncios, pausas e sobreposições visuais sutis — quanto na trilha sonora, que percorre não apenas os grandes sucessos de Rita, mas também canções menos conhecidas que, no contexto do documentário, adquirem novos sentidos. Canções como “Saúde” ou “Coisas da Vida” deixam de ser apenas composições pop para se tornarem chaves de leitura de fases específicas da vida da cantora, evidenciando a profunda simbiose entre sua criação artística e sua trajetória pessoal.
Essa exposição do íntimo, no entanto, nunca soa invasiva ou voyeurista. O filme é marcado por uma ética da delicadeza, que se revela tanto na edição quanto na trilha sonora.
Há, também, uma pulsação política no filme — ainda que discreta. A Rita transgressora, que enfrentou a repressão da Ditadura Militar, que foi presa por denunciar a violência policial, que ironizou a caretice da sociedade com irreverência e poesia, está ali, mas nunca em primeiro plano. O gesto do diretor parece ser o de afirmar que a política de Rita está em sua própria maneira de estar no mundo: uma política do afeto, da liberdade, da não conformidade. Sua voz — muitas vezes em off, outras vezes em performance ao vivo ou em entrevistas icônicas — surge como uma espécie de fio condutor de um pensamento artístico que foi, sempre, também existencial.
Em sua camada mais comovente, o documentário se aproxima da experiência do luto. Filmado em parte durante o período em que Rita lutava contra o câncer, o longa se transforma, ainda que não explicitamente, num processo de elaboração da perda. A sequência em que os filhos leem, pela primeira vez diante das câmeras, uma carta deixada por Rita após sua morte, é particularmente emblemática. O dispositivo fílmico se dissolve diante do afeto bruto, e o espectador é convidado a compartilhar o impacto de uma ausência que se materializa ali, no corpo que chora, na voz que falha, nos olhos que brilham. O filme, nesse sentido, é tanto um memorial quanto um gesto contínuo de presença.
Ao se encerrar com a imagem do velório de Rita no Planetário do Ibirapuera – local escolhido pela própria artista, que dizia sonhar em ser abduzida por um disco voador -, Mania de Você reconduz o espectador à dimensão do mito, mas o faz sem romper o pacto da intimidade. A morte, como no início do filme, volta a ser evocada como retorno, como reintegração cósmica. A Rita Lee que parte é a mesma que, de alguma forma, permanece — nos arquivos, nas músicas, nas memórias que ainda restam por serem compartilhadas.
Rita Lee: Mania de Você não é uma obra definitiva sobre a artista, tampouco pretende sê-lo. Como afirma Roberto de Carvalho em dado momento, “a vida da Rita é um universo de décadas, e o filme tem apenas uma hora e meia”. O que se tem aqui é um recorte. Um gesto. Uma tentativa de reter, por meio da arte do documentário, aquilo que escapa: o tempo, a presença, a voz. Um filme que se sustenta na sutileza de mostrar sem esgotar, de sugerir sem explicar. E, sobretudo, de amar sem idealizar.
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