Dave é um cara comum que leva uma vida banal, como todos os seus vizinhos, e que segue os dias meio que no automático. Ele vive numa ilha chamada Aqui, onde tudo é muito correto, organizado, simétrico. A previsibilidade do local garante a segurança de seus habitantes, que só sentem uma pontinha de angústia em suas almas quando pensam no lugar mais aterrorizantes de todos: a terra d’além-mar chamada “Lá”, onde reina o caos e a morte, já que os que foram para lá nunca mais voltaram.
Em A Gigantesca Barba do Mal, história em quadrinhos criada pelo inglês Stephen Collins e lançada aqui no Brasil pela Editora Nemo, com tradução de Eduardo Soares, as angústias do homem moderno são apresentadas através de uma metáfora que mescla com perfeição o grotesco e a poesia.
Logo no início o narrador nos diz que “Debaixo da pele de todas as coisas há algo que ninguém pode saber. A função da pele é manter tudo lá dentro e não deixar nada aparecer”. É a partir dessa reflexão, a respeito dos nossos segredos e anseios mais íntimos, que a triste história de Dave se desenvolve.
A solitária rotina do protagonista envolve se deslocar para o trabalho ao lado de pessoas que estão sempre de cabeça baixa, talvez tão infelizes quanto Dave, talvez apenas distraídas com seus celulares; sentar na sua mesa de trabalho, preparar e apresentar gráficos muitos impressionantes, mas que ele não sabe muito bem para o que servem; ouvir a música “Eternal Flame”, da banda The Bangles no repeat; voltar para casa com as mesmas pessoas distraídas; jantar sozinho enquanto desenha as pessoas que passam diante da sua janela.
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A grama aparada, as barbas raspadas, as filas alinhadas, as roupas bem passadas, a ausência de imprevisibilidades no cotidiano garantia segurança a cada passo dado pelos cidadãos de Aqui, mas também alimentava certa angústia, pois se tudo era tão igual, como poderia haver algum tipo de identidade real? Como é possível ser alguém de verdade quando tudo ao redor parece mera reprodução, como se não houvesse individualidade e o comportamento fosse apenas uma repetição automática, como se os seres humanos estivessem numa linha de produção tipo naquele clipe do Pink Floyd?
A resposta é: a partir de um ruído que faça a normalidade desmoronar.
Há diversas críticas ao comportamento de manada, à fascinação pelo grotesco imposta pela televisão e seu eterno clamor por audiência a qualquer custo.
No desenho infantil Vida de Inseto, há uma cena em que as formigas estão andando em fila e uma folha cai bem no meio da formação, interrompendo o fluxo. Bastaria dar a volta, mas formiga vê a folha diante de si e, com toda a sua inteligência, grita: “Me perdi!”. Em A Gigantesca Barba do Mal, a folha que interrompe o fluxo de previsibilidade é um pequeno pelo que surge no rosto do protagonista. Ele rapidamente o corta, mas logo após percebe que ele cresceu novamente e, pior, está se espalhando pelo seu rosto.
A distância entre Aqui e Lá é do tamanho do mar.
Há diversas críticas ao comportamento de manada, à fascinação pelo grotesco imposta pela televisão e seu eterno clamor por audiência a qualquer custo, ao mercado de autoajuda que sempre enxerga na tragédia uma oportunidade de criar narrativas que sejam lucrativas, etc.
Stephen Collins tem um traço cartunesco e faz um excelente uso da separação dos quadros, em divisões bastante variadas e com muitos espaços vazios, de modo a dimensionar não apenas a solidão de Dave, mas também a magnitude daquele evento para os cidadãos de Aqui. As variações de cinza e os poucos diálogos colaboram para criar uma atmosfera que é claustrofóbica não tanto pelo espaço físico (uma ilha), mas do ponto de vista psicológico do personagem, como se ele estivesse preso dentro de si mesmo, uma criatura arranhando as paredes interiores sem conseguir atravessar aqueles olhos tristes e aquele semblante de derrota. Ou de outra maneira: você olhando pela janela do ônibus e imaginando uma vida que não é a sua.
É bastante comum pensarmos que há uma versão de nós mesmos (aquela que consideramos a nossa melhor versão) que não conseguimos traduzir para o mundo exterior. É essa versão que diz as coisas na hora certa, que reage às situações da maneira mais adequada, etc. Sabe-se lá por qual motivo (excesso de idealização, talvez), essa não costuma ser a pessoa que costumamos a apresentar ao mundo e não é nem mesmo aquela que vemos no espelho todos os dias de manhã. Então o que sobra é um olhar distante que não consegue esconder a decepção e o peso enorme que preenchem o nosso peito.
A Gigantesca Barba do Mal (finalista do Eisner Award) de certa forma demonstra a necessidade de expandir o olhar para além de Aqui e se livrar desse peso no peito. É sobre tentar respirar de verdade em um mundo que só te sufoca. O impacto disso pode ser assustador, já em vez de respiração muitas vezes a vida só nos ensina a praticar apneia.
Pois que ela nos ajude a enfrentar o mar então.
A GIGANTESCA BARBA DO MAL | Stephen Collins
Editora: Nemo;
Tradução: Eduardo Soares;
Quanto: R$ 35,90 (240 páginas);
Lançamento: Outubro, 2016.