“Eles estão vindo te pegar, Bárbara”, provoca Johnny. A irmã pede para que ele pare de ser infantil. Os dois andam entre as lápides sem perceber que há uma figura cambaleando ao fundo. Instantes depois, o mesmo homem, aos tropeços, vira em direção aos dois. “Olhe, lá vem um deles.”
Em menos de um minuto, o estranho ataca Bárbara e, na tentativa de defendê-la, Johnny se torna a primeira vítima de um morto-vivo moderno. A cena inicial de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George A. Romero diz muitas coisas sobre o gênero que viraria uma febre em jogos, livros, filmes e séries de horror.
“George Romero e o roteirista John Russo desconstruíram a imagem do zumbi vodu ao representar os zumbis como criaturas sem alma e movidas pelo instinto da fome.”
Da antiquada ambientação em um cemitério, que remonta narrativas góticas de histórias em quadrinhos da editora E.C. Comics, à interpretação do ator Bill Hinzman (o zumbi nº1), o momento balizaria as referências para fãs. A partir dali, a própria ideia de um cadáver andando adquiria uma nova conotação.
No cinema de horror na década de 1960, o morto-vivo não era novidade. Ela havia aparecido em clássicos como White Zombie (1932), Revolt of the Zombies (1936) e The Devil’s Daughter (1939), entre outros. Em seu livro Zumbi – O Livro dos Mortos, Jamie Russell comenta que a ideia de corpos em sobrevida vinha de relatos de viajantes ao Haiti.
Sem conhecer bem a cultura vodu, os norte-americanos acreditavam em poderes místicos que provocavam a transformação de vivos e de mortos em servos de interesses malignos. Romero e o roteirista John Russo desconstruíram essa imagem ao representar os zumbis como criaturas sem alma e movidas pelo instinto da fome.
Relatos da época dão conta que o comportamento de Hizman, que passaria o resto da carreira atuando como morto-vivo, influenciou os demais figurantes, que passaram a imitá-lo. O comportamento da massa irracional e esfomeada cambaleando em direção ao abrigo dos protagonistas se tornaria o elemento mais assustador da obra.
Filmado em preto e branco,A Noite dos Mortos-Vivos acompanha um grupo de sete sobreviventes que se isola numa casa de campo durante um ataque zumbi. No refúgio, os personagens travam uma disputa por poder para definir se ficam ou tentam a sorte no meio dos mortos famintos.
Realizado com um orçamento apertado, o longa-metragem de Romero ganhou fama em drive-ins, quando era exibido em sessões de meia-noite. A legião de fãs era justificada pelo sabor de novidade da obra, cheia de efeitos visuais crus que, apesar de envelhecidos, ainda convencem. Um exemplo é a cena em que um zumbi devora um rato na frente ao lado de seus companheiros, que disputam pedaços de um intestino humano.
Para criar o roteiro, Romero se inspirou nos quadrinhos que lia quando criança. Em títulos como Contos da Cripta, a editora apresentava monstros da literatura gótica britânica – como vampiros e lobisomens – atacando a sociedade contemporânea. Essas histórias foram caracterizadas por Tony Williams, autor de uma biografia do diretor, como horror naturalista. Esse traço do diretor é evidenciado por seus personagens, que mantêm preocupações altamente contemporâneas diante da ameaça, ao buscar respostas para o caos na televisão, na arma e na racionalidade.
Outra característica da obra, que se tornaria a marca autoral de Romero, é a crítica social.A Noite de Mortos-Vivos coloca um personagem negro lutando contra brancos, que beiram o irracional, pelo poder de decisão sobre sua própria vida. Ainda que não seja intencional, o conflito fictício encontra eco nas lutas pela igualdade racial e social que explodiam nos Estados Unidos no período em que o filme foi lançado.
A representação dos mortos-vivos também é alvo de muita análise por fãs e críticos. O diretor apresenta um grupo de monstros irracionais que não deixam de ser humanos, apesar do tratamento brutal dado pelos vivos. Nas últimas cenas da obra, as criaturas são queimadas, enforcadas e usadas em jogos sádicos. É como se Romero nos mostrasse que não somos tão diferentes de sua massa de zumbis esfomeados.