A única tarefa é rolar uma rocha montanha acima e, quando o objetivo é atingido, recomeçar. A única tarefa é rolar uma rocha montanha acima e, quando o objetivo é atingido, recomeçar. A única tarefa é rolar uma rocha montanha acima e, quando o objetivo é atingido, recomeçar.
Se apenas a leitura de algo repetitivo pode causar a sensação de um esforço desnecessário, a missão designada a Sísifo, que exige grande empenho físico, faria com que qualquer um tivesse o desejo de se colocar em frente à rocha quando ela desce e dar fim à própria vida. No entanto, o mundo inferior já é a sua morada.
Vivência igualmente desgostosa é a de um haitiano, negro e pobre que mora no Canadá em um quarto sujo, pequeno e quente dividido com mais uma pessoa por um biombo japonês.
A forma de superar essas situações é sugerida por Albert Camus em O mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo, texto em que o escritor diz ser preciso imaginar um Sísifo feliz, que valoriza a sua luta invés de mirar o objetivo de alcançar o topo.
Da mesma maneira, o escritor haitiano Dany Laferrière nos mostra em Como fazer amor com um negro sem se cansar que, apesar de todas as situações que colocam o autor-personagem à margem da sociedade, o apreço por essa caminhada em busca de dignidade pode resultar em uma obra singular e ela mesma se tornar a chave para superar a situação.
No livro, isso ocorre por meio da narrativa sobre a condição de alguém visto como exótico e que desperta o interesse sexual de garotas jovens, brancas e universitárias. Dessa maneira, a imagem preestabelecida sobre os negros é relatada de maneira bastante crítica e marcada por um humor ácido.
A semelhança da vida do personagem com a do próprio autor, o que constituiria a obra como um romance autobiográfico, faz com que o livro por si só se enquadre perfeitamente naquilo que Albert Camus coloca como sendo a saída para Sísifo.
Miz S.L. está, literalmente, morta de indignação. Não consigo dizer em qual momento exatamente cometi a gafe. Gafe monumental. Irreparável. Deve ter sido quando eu disse que os Negros ainda estão na era do Rango e que, para eles, comer uma tigela de arroz, às vezes, é preferível aos mistérios do amor.
Essa solução, no entanto, não é dada apenas ao personagem mitológico, mas sobretudo para quem vive a rotina de “Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa estrada se sucede facilmente a maior parte do tempo. Um dia apenas o ‘porque’ desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto”.
O motivo para que alguém se submeta a essa cansativa e repetitiva jornada parece óbvio: é preciso, é necessário, tem as contas, os filhos, a comida, “se não eu não vivo”.
No entanto, viver apenas com esses objetivos faz com que todos nos ternemos Sísifos.
Acordar e ir ao trabalho é como levantar a rocha para o alto do morro. Pagar as contas se assemelha à breve satisfação de chegar ao cume. Saber que no próximo mês outras virão é como ver a rocha descendo novamente.
É preciso mais do que isso.
É preciso, por exemplo, de amor.
No entanto, o personagem da obra lançada em 1985 e que se passa em 1970 em Montreal, no Quebec, está mais preocupado com comida do que com o amor, situação essa que não se aplica só a ele, mas sim a todos os negros. É o que ele explica a uma das jovens com quem teve um caso:
“Miz S.L. está, literalmente, morta de indignação. Não consigo dizer em qual momento exatamente cometi a gafe. Gafe monumental. Irreparável. Deve ter sido quando eu disse que os Negros ainda estão na era do Rango e que, para eles, comer uma tigela de arroz, às vezes, é preferível aos mistérios do amor. Normalmente, os Negros é que deveriam se ofender, se indignar por ainda estarem em uma situação tão terrível. De qualquer forma, não seria razão para uma Inglesa se ofender. Aliás, comparar uma garota de Westmount a uma tigela de arroz é uma reflexão filosófica acima das minhas forças. Mao não fez a revolução para que todo Chinês pudesse ter uma Chinesa, mas sim para que todo Chinês e toda Chinesa pudessem ter uma tigela de arroz por dia. Então, para uma Chinesa e um Chinês o Arroz é algo sagrado. Enquanto que para Miz Sophisticated Lady uma tigela de arroz é uma tigela de arroz. Ela recusa até que eu chame um táxi para ela. O orgulho dos donos do mundo. Ela vai embora, e quanto mais eu reflito, mais tenho tendência a acreditar que se trata menos de uma questão de arroz e mais de um antigo mal-entendido histórico, irreparável, total, definitivo, um mal-entendido de raça, de casta, de classe, de sexo, de povo e de religião”.
Como se nota, as diversas diferenças aparecem de maneira bastante significativa na obra do escritor que deixou o seu país em 1976 ao fugir da ditadura de Baby Doc. Essa marcação está presente inclusive na grafia, que opta por usar letras maiúsculas quando se refere aos Negros, Brancos ou Chineses.
Outra maneira de diferenciação se dá por meio da religião ao tornar explícita a opção dos personagens negros pelo islamismo, aparecendo na obra por meio de citações frequentes ao Corão e estabelecendo um diálogo com o que está sendo narrado.
Considerada também por Camus, a religião aparece quando ele usa Kierkegaard para ajudar a estabelecer a sua noção de absurdo:
“Nada mais profundo, por exemplo, que a visão de Kierkegaard segundo a qual o desespero não é um fato mas um estado: o próprio estado do pecado. Pois o pecado afasta de Deus. O absurdo, que é o estado metafísico do homem consciente, não conduz a Deus. Talvez essa noção se esclareça se eu arriscar esta enormidade: o absurdo é o pecado sem Deus”.
Ao tratar do absurdo em suas diversas faces, questão que nasce no ensaio a partir do suicídio, visto como o próprio sentimento da absurdidade, Camus assim se refere ao suicídio filosófico:
“Eu tomo a liberdade de chamar agora de suicídio filosófico a atitude existencial. Mas isso não implica um julgamento. É uma maneira cômoda de designar o movimento pelo qual um pensamento se nega a si mesmo e tende a se ultrapassar naquilo que constitui sua negação. Para os existenciais, a negação é seu Deus. Exatamente: esse deus só se sustenta com a negação da razão humana. Mas, como os suicidas, os deuses mudam junto com os homens. Há diversas maneiras de saltar, mas o essencial é saltar. Essas negações redentoras, essas contradições finais que negam o obstáculo ainda não vencido, podem nascer tanto (é o paradoxo o alvo deste raciocínio) de uma inspiração religiosa como da ordem racional. Elas aspiram sempre ao eterno, é apenas nisso que dão o salto”.
Esse salto e essa busca da eternidade pode ser vista por alguns como a própria obra de arte. Afinal, escrever um livro pode ser encarado como uma maneira de deixar um legado e continuar vivo nas páginas mesmo após a morte.
É o ato que faz Dany Laferrière ao publicar um romance autobiográfico que não representa somente a sua criação artística, mas também a sua própria vida, partindo da ideia que ele não foi um repetidor sisífico, mas sim a de que tem uma vida digna de se tornar obra.
Entretanto, o romance de estreia de Laferrière retrata a absurdidade sobretudo por refletir a revolta do personagem, característica essa que sinaliza o ilógico de acordo com Camus:
“Mas chega um dia e o homem verifica ou diz que tem trinta anos. Afirma assim sua juventude. Mas, nesse mesmo lance, se situa com relação ao tempo. Ocupa ali seu lugar. Reconhece que está num dado momento de uma curva que confessa ter de percorrer. Ele pertence ao tempo e, nesse horror que o agarra, reconhece nele seu pior inimigo. Amanhã, ele queria tanto amanhã, quando ele próprio deveria ter-se recusado inteiramente a isso. Essa revolta da carne é o absurdo”.
Além de trazer a revolta do personagem Velho, o primeiro título da “Autobiografia americana” de Laferrière mostra também que esse levante se dá, acima de tudo, por conta do ambiente em que ele vive, uma vez que para Camus “O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. É, no momento, o único laço entre os dois. Cola-os um ao outro como só o ódio pode fundir os seres”.
E é justamente essa perturbação do autor-personagem que gera o livro igualmente perturbador.
COMO FAZER AMOR COM UM NEGRO SEM SE CANSAR | Deny Laferrière
Editora: Editora 34;
Tradução: Heloisa Moreira e Constança Vigneron;
Tamanho: 152 págs;
Lançamento: Janeiro, 2012.
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