As primeiras linhas de Almas Mortas retratam o surgimento de uma sebe, que poderia ser de qualquer senhor de condição média, em uma estalagem comum, transportando um cavalheiro sem características extraordinárias. Paira o mediano. Não há nada de excepcional ou promissor na paisagem, na chegada ou na apresentação da personagem e, no entanto, desde o início existe algo que captura o leitor e o mantém atento até as últimas páginas do livro: a narrativa de Nikolai Gógol.
O romance-poema se pretende realista e portanto não pode deixar de descrever a realidade do modo mais fiel possível. A vida russa observada pelo narrador gogoliano é calcada pelo imobilismo de um povo padronizado através da inércia que o caracteriza. Paulo Bezerra, na “pequena biografia” de Gógol, presente na edição brasileira da obra pela editora Perspectiva, apontou a universalização desse torpor que se estende a praticamente todos os traços das cenas de vida dos senhores russos que são os personagens destacados no livro.
O mote do romance, sugerido a Gógol por Púchkin, está justamente ligado à manutenção da letargia geral. Apresentando-se superficialmente como “Conselheiro Civil Pável Ivánovitch Tchítchicov, proprietário rural, viajando a negócios particulares”, ele pretende comprar camponeses mortos, ainda registrados como vivos, para obter um empréstimo do Estado que o enriqueça, permitindo-o viver na mesma estagnação dos proprietários da alta classe russa.
Por acomodar em si particularidades tipicamente russas, Tchítchicov pode e deve ser visto como personagem-tipo. A construção do protagonista como figura representativa do homem russo médio é tão bem apurada que valida a seguinte provocação do narrador para os leitores: “Mas qual de vós, cheio de humildade cristã, não em voz alta, mas em silêncio, a sós consigo mesmo, nos momentos de exame de consciência, cravará no fundo da própria alma esta penosa indagação: ‘Será que dentro de mim mesmo não existe alguma parcela de Tchítchicov?’”.
A vida russa observada pelo narrador gogoliano é calcada pelo imobilismo de um povo padronizado através da inércia que o caracteriza.
A tipificação e inação das personagens são expostas por Gógol a partir de recursos, no mínimo, inusitados para os padrões estético-literários de sua época. A começar pelos eventuais aparecimentos do narrador-autor como primeira pessoa interrompendo a sequência do relato. A imagem do contador de histórias que se posiciona como tal dentro da própria prosa aproxima o texto à oralidade, sobretudo quando essa voz reproduz certos impropérios em língua russa e deprecia ironicamente os estrangeirismos tão célebres nas rodas de conversa da alta sociedade do país.
O autor vale-se da língua russa para construir uma linguagem que domina como ninguém. Ele também detém os segredos da história e vai liberando-os ao leitor paulatinamente, como quem sabe que rege uma preciosidade. Assim, só depois que mais da metade de Almas Mortas já está encaminhada é que revela-se o verdadeiro projeto de Tchítchicov, suas origens e objetivos. As digressões e retornos da narrativa envolvem os legentes e são edificados por um discurso que leva em conta a sonoridade das palavras, corroborando, inclusive, a nomeação do romance como “poema”.
Mas de todos os mecanismos utilizados por Gógol para enriquecer sua narrativa, certamente o mais expressivo é o humor, não à toa rendendo de Paulo Bezerra a declaração de que o autor russo tem “o riso como ponto de partida” para Almas Mortas. O que caracteriza a jocosidade gogoliana é o aproveitamento do grotesco em sua concepção. O burlesco e o cômico estão ligados desde o início do romance.
Gógol retira do grotesco a matéria para o risível, mormente relacionado ao corpo humano. É precisamente a metonímia a destacar-se nos textos gogolianos como figura de linguagem responsável por muitos dos gatilhos de humor e também de crítica social. Em Almas Mortas, mais do que o corpo a corresponder ao ser humano como um todo, vigora uma sinédoque ainda mais abrangente: Tchítchicov, o medíocre, espertalhão e corruptivo funcionário público, representa em maior ou menor grau todos os russos (ou ao menos aqueles da classe dos donos de terras e servos), simboliza o dissimulado funcionamento da sociedade russa. O protagonista é a parte que representa o todo da Rússia examinada por Gógol.
Narrando a desonesta tentativa de ascensão socioeconômica de Tchítchicov, o autor censura a burocracia russa, ineficiente desde as pequenas reuniões regionais até à legislação nacional, que dá abertura a furos tão grandes como o de comprar almas mortas sem que isso seja um crime efetivamente condenável por lei. Nem mesmo o leitor escapa da índole delatora do narrador do romance; o privilégio da posição confortável e distante daqueles que leem a obra é também reprovada por ele.
Gógol esclarece sua visão do que seria a verdadeira função do escritor e da literatura, função esta que o impediria de manter-se calado ou indiferente diante das deficiências de sua nação. As recriminações à Rússia elaboradas durante a narrativa são, para ele, a tarefa de qualquer autor sério e preocupado com seu país. Ele reconhece os defeitos da nação e não deixa de amá-la, desviando-se da idealização romântica que aceita estética e passivamente as deformações do país para acercar-se do realismo ativo que move-se em direção à melhora.
Em suma, Almas Mortas, que pretendia ser a Divina Comédia da Rússia, cumpre a missão de retratar a realidade russa a partir de um realismo crítico que extrapola a visão idealista do país, alimentada pela hirta nobreza. O que a distingue das demais obras da mesma escola literária e a torna tão gogoliana é a maneira com que capta as deformidades e os exageros quase insólitos que curiosamente compõem tal realidade dissimulada. A suscetibilidade de Gógol àquilo que acontece ao seu redor, seu destemor para narrá-lo e o humor grotesco do qual se vale para tanto garantem o sucesso do romance-poema em dissertar sobre as qualidades internas e externas da natureza de sua pátria.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]ALMAS MORTAS | Nikolai Gógol
Editora: Perspectiva;
Tradução: Tatiana Belinky;
Quanto: R$ 45,70 (432 págs);
Lançamento: Janeiro, 2014.
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