A borboleta e o sino – uma antologia de haikus (Cultura e Barbárie Editora, 2016, tradução de Sérgio Medeiros) é um esforço de mudar poemas japoneses de Yosa Buson para a língua portuguesa. Sérgio Medeiros emprestou a expressão “poemas mudados para o português”,usada por Herberto Hélder, que traduziu haicais e tankas, reunidos na antologia O bebedor nocturno. Neste empréstimo, o tradutor indica o caminho da transcriação poética, cotejando versões em inglês e francês e rudimentos de japonês.
A borboleta e o sino é uma publicação artesanal do selo catarinense Cultura e Barbárie. Além de haicais, separados pela estação do ano, traz reproduções de ilustrações de Egon Schiele. O título é uma referência ao poema mais conhecido de Buson:
no sino do templo
dorme
uma borboleta
A antologia traz os poemas em romaji, a transliteração da língua japonesa para o alfabeto romano. E também notas de rodapé para explicar aspectos da cultura japonesa, como este:
a raposa vem
vestida de cortesão
nesta primavera
De acordo com a nota, as raposas se fantasiam para pregar peças. Para o leitor não iniciado, cabe uma explicação maior: A raposa (kitsune) é um animal sagrado na mitologia japonesa. Tem poderes mágicos. Em geral, transforma-se numa bela moça para seduzir rapazes. Aqui, vê-se a raposa travestida num príncipe.
Há ecos intertextuais, referências à poesia clássica:
chego aos arrozais:
ouço a lua claramente
e percebo as rãs
***
no fundo do lago
uma sandália de palha:
chuva de granizo
O primeiro poema alude ao canto da rã, tema clássico da poesia chinesa e japonesa. O tema (kigo) foi subvertido por Bashô, no poema: velho lago / barulho de água / a rã salta. Com o segundo poema, Buson teria respondido a seu mestre com a percepção da transitoriedade de todas as coisas no universo. A percepção sobre a passagem do tempo é uma das chaves para compor e ler haicais.
Outro kigo clássico é flores caindo, ou flores que caem:
as flores caindo…
e o menino embaixo delas
limpa o seu calção
Estas reflexões são o objetivo do haicai: pensar sobre o sentido último de nossa existência.
A referência é o poema Uma flor que cai/ Ao vê-la tornar ao galho/ Uma borboleta!, de Arakida Moritake. E há, também, uma repercussão transversal da metamorfose operada por Bashô ao corrigir o poema de seu aluno Kikaku. O aluno escreveu uma libélula/ tirando as asas/ uma flor de pimenta. A versão de Bashô, propondo um exercício de compaixão é: uma flor de pimenta/ ao colocar asas/ uma libélula.
A pintura era um instrumento privilegiado para ajudar Buson a criar haicais. Só o pintor poderia ter esta perspectiva panorâmica ao observar um camponês:
Ao cruzar o campo
vestindo só roupas leves
vira uma manchinha
Ou aproximar-se de seu objeto, como um close:
noite de verão:
nos pelinhos das lagartas,
as gotas de orvalho
E outros aspectos culturais, não só da mitologia, são evocados, como o das modelos (bijins) retratadas em xilogravuras por artistas como Kitagawa Utamaro. E as catástrofes naturais que abalam o arquipélago:
a bela mulher
franze a testa ao mordiscar
uma ameixa verde
***
o cesto no chão
sente logo o terremoto
que estremece o campo
Por trás de poemas que têm como tema os elementos da natureza em cada estação do ano, oculta-se uma reflexão filosófica:
Flor de lótus branca:
será que o monge já sabe
quando vai cortá-la ?
Estas reflexões são o objetivo do haicai: pensar sobre o sentido último de nossa existência. Por que não escrever um tratado sobre o tema, como fazem os filósofos ocidentais ? Os japoneses preferem esta forma concisa, inacabada e aparentemente banal. Há 400 anos tenta transmitir uma mensagem. Quantos terão captado seus sentidos?
Yosa Buson é um dos integrantes do quarteto de mestres do haicai japonês. Renovou a poesia japonesa com Matsuo Bashô, Issa Kobayashi e Masaoka Shiki. Poeta e desenhista, Taniguchi Buson nasceu em 1716, in Kema, na província de Settsu, Japão e morreu em 24 de dezembro de 1783, em Quioto. Nasceu em família rica e, como Bashô, abandonou tudo pela arte. Viajou pelo nordeste do Japão e estudou haicai com vários mestres. Em 1751 estabeleceu-se em Quioto, como pintor profissional, ficando aí a maior parte de sua vida. Mudou o nome para Yosa, cidade da província de Tango, onde viveu de 1754 a 1757. Começou a ficar famoso depois de 1772.
Sérgio Medeiros é professor de Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Tem 16 livros publicados entre ensaios, traduções e poesia, com destaque para Sexo Vegetal (Iluminuras), Totens (Iluminuras) e O Choro da Aranha (7Letras). Sua obra poética já foi traduzida para o espanhol, o italiano e o inglês e foi finalista do prêmio Jabuti em 2008 e 2010 e semi-finalista do Prêmio Portugal Telecom em 2010 e 2012.
A BORBOLETA E O SINO | Yosa Buson – Sérgio Medeiros
Editora: Cultura e Barbárie;
Tradução: Sérgio Medeiros;
Tamanho: 180 págs.;
Lançamento: Março, 2016.