Bolota, o gato, empurrou um envelope no chão, com as duas patinhas. “O que é isso?”, pensou João, o humano. Abriu: era uma carta.
“Caro humano,
É com pesar que eu, a quem você carinhosamente chama de Bolota (apesar de não ser meu nome real), anuncio a minha partida. Nós não costumamos avisar quando chega a hora de voltar para o nosso planeta, mas fui tratado tão bem nos últimos anos que achei que você merecia algum tipo de satisfação. Inclusive, o adiamento da dominação da Terra para 2019 foi decisão minha, como forma de agradecimento.”
Começou a rir. Olhou para os lados pensando em quem poderia ter deixado aquela carta – estava certo de que ela não havia sido escrita pelo gato, mas achou a brincadeira interessante. Continuou a ler.
“Tenho analisado sua vida e enviado informações ao meu governo desde que cheguei, mas creio que agora que você se estabilizou as novidades não têm sido suficientes e se permanecer aqui eu posso perder o meu emprego; você é um bom humano, João, mas seu atual dia a dia monótono não é uma fonte de estudo interessante. Digo: crossfit o tempo todo? Sério, mesmo?
Enfim… Decidi me inscrever no Programa de Novos Humanos e devo ficar fora até que seja escolhida uma família para me receber.”
Continuou rindo, se sentou no chão e seguiu lendo enquanto acariciava o gato.
“Como você é uma pessoa de conhecimentos limitados que acredita que somos animais de estimação e gostamos de brincar com novelos de lã, deve estar questionando a veracidade desta carta. Entendo perfeitamente e aceito este seu seu jeito de ser inocente, mesmo assim achei importante tentar escrever o que eu sinto – como disse anteriormente, você merece, João.
Fique sabendo que cada arranhão que lhe dei, para poder coletar suas amostras de sangue, me despertou tristeza e sofrimento. Se eu fosse um pet, como um cachorro, adoraria tê-lo como meu tutor, pois seu coração é cheio de amor e isso nunca será esquecido por mim.”
Olhou para o gato: Bolota estava com lágrimas nos olhos. Parou de rir e continuou a ler, já achando tudo aquilo um pouco estranho.
Decidi me inscrever no Programa de Novos Humanos e devo ficar fora do planeta Terra até que seja escolhida uma família para me receber.
“Peço desculpas por ter destruído a cortina da sala na semana passada. Eu precisava instalar uma nova câmera na residência e a única maneira de subir até o teto era escalando – fazia tempo que eu não precisava fazer isso e não imaginei que o material estava tão frágil, deve ser porque já está velho, é bom comprar novas cortinas de vez em quando (ou algumas mais caras, de qualidade melhor. Você já economiza na minha ração, pode gastar um pouco mais nos itens de decoração).”
Levantou e permaneceu lendo.
“Por favor, não divulgue nenhuma informação desta carta para qualquer outro humano, elas são confidenciais e só estão sendo passadas a você porque acredito que nos tornamos algo parecido com o que você chama de ‘colegas’ – ‘amigos’ seria uma palavra muito forte. Se você falar sobre isso com alguém, infelizmente, precisarei matá-lo – mas não gostaria.
Fique em paz, humano.”
Começou a rir novamente. A mente brilhante por trás daquela brincadeira só poderia ter sido sua esposa – mesmo que a caligrafia não fosse dela, ela era muito bem-humorada e a única com acesso à casa.
Enquanto pegava o celular para ligar para a mulher, ouviu um barulho e olhou assustado: a porta da sala estava aberta.
Em frente à porta, pôde ver Bolota sobre as duas patas traseiras, como um homem, de cabeça baixa. Saiu andando sem olhar para trás. A porta se fechou.