Exibido como programa fixo da Rede Globo desde 2008, o jornalístico Profissão Repórter é uma das maiores preciosidades da grade da emissora. Comandado pelo experiente repórter Caco Barcellos, o programa é uma espécie de oásis de qualidade – e de reputação, conforme já analisado nessa coluna – dentro de uma emissora que, sobretudo pelo seu caráter hegemônico, costuma levantar muita desconfiança. Mas mesmo os críticos mais ferrenhos à Globo tendem a fazer poucas ressalvas ao Profissão Repórter.
E por que isso acontece? Creio que, em partes, isso se dê porque o programa encontrou um formato bastante interessante entre os jornalísticos, experimentando um tom didático que envolve o espectador com o processo de produção da notícia. Como os repórteres são todos “focas” (jovens jornalistas recém-formados, no jargão da profissão), há um caráter pedagógico de ensinar sobre como fazer jornalismo, sob a batuta de um mestre incontestável, Caco Barcellos. Há, portanto, um teor de humildade necessária naquele que aprende – e esse clima meio “franciscano”, digamos, é emprestado ao programa.
Mas, mais do que isso, creio que a qualidade do Profissão Repórter tenha a ver com sua forte marca jornalística. O grande trunfo do programa está em algo que nem sempre é devidamente valorizado pelos próprios jornalistas: a importância da consolidação de uma boa pauta. A pauta, em resumo, é o início de qualquer processo jornalístico, e ela diz respeito a um olhar específico sobre o mundo que será desvendado e levado ao público. Muitas vezes, as boas pautas envolvem ver algo (o famoso “faro jornalístico”) em lugares que outros não veem nada.
O Profissão Repórter dessa semana foi um exemplo de como a qualidade da pauta faz diferença. O episódio surge de uma boa sacada: o de mostrar como é a vida dos presos que usam tornozeleiras eletrônicas. O “acessório” ganhou conhecimento do grande público principalmente em razão dos diversos políticos incriminados por corrupção e que, depois de acordos com a justiça, passaram a usar estas tornozeleiras como forma de executarem penas de prisão domiciliar.
O grande trunfo de Profissão Repórter está em algo que nem sempre é devidamente valorizado pelos próprios jornalistas: a importância da consolidação de uma boa pauta.
A partir deste mote razoavelmente simples da tornozeleira, o programa acaba por desdobrar um verdadeiro tratado sobre o sistema penal brasileiro. Enfrenta, de maneira didática, uma questão bastante complexa e que mobiliza, de formas absolutamente distintas, os brasileiros hoje divididos por um muro imaginário que separa “direita” e “esquerda”. Em suma, aqueles que acreditam que “bandido bom é bandido morto” (ou preso), que a única solução aos problemas de segurança é tornar as punições cada vez mais rígidas, e aqueles que acham que há mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia.
Os dados jornalísticos estão lá, no episódio do Profissão Repórter: já conhecemos o suficiente sobre o sistema penal para verificar que prender cada vez mais gente, em condições cada vez piores, não tem sido uma solução inteligente para tornar a vida de todos mais segura. Os especialistas são ouvidos, e asseguram: as tornozeleiras eletrônicas são uma alternativa de punição e, inclusive, oneram menos economicamente a população. Enquanto um preso encarcerado custa ao estado cerca de 3 a 4 mil reais por mês, as tornozeleiras eletrônicas custam cerca de 250 reais.
“Ah, mas isso é uma vergonha, o sujeito cometer um crime e poder ficar tranquilamente na sua casa”, diriam os defensores das posições mais conservadoras. E aí aparece a grande qualidade do Profissão Repórter: a possibilidade de levar o espectador à vida do outro, dar voz – e cara – a quem quase nunca é ouvido. Sendo assim, os jovens repórteres conseguem acompanhar a vida dos que tiveram a pena transformada em prisão domiciliar (um sonho de cinco mil pessoas, como diz um dos entrevistados). O cárcere da tornozeleira ocorre pela vigilância e pelo monitoramento: cada preso que a utiliza é controlado por um sistema que sabe onde ele está e se cumpre as prerrogativas de sua pena (o de estar todas as noites em casa ou a de não se afastar por mais de tantos metros de seu domicílio).
Por fim, a sacada de Profissão Repórter é o de tratar a tornozeleira eletrônica como um símbolo que iguala pobres e ricos. Um símbolo, obviamente, de algo negativo, uma condenação na justiça – um estigma que se carrega, literalmente, na pele – e isso faz parte da punição exercida pelo instrumento. Por isso, faz todo o sentido que a narrativa do Profissão Repórter equivalha a vida de Jacileide, em Recife, à do deputado Dison Lisboa, no Rio Grande do Norte. Ambos tiveram a prisão domiciliar liberada sob a condição de serem monitorados via tornozeleira.
Jacileide, uma mulher pobre, mãe de três filhos, foi condenada por tráfico e teve prisão domiciliar concedida na prerrogativa de não se afastar poucos metros de sua casa. Na prática, ela não pode trabalhar nem levar os filhos para a escola. Mas seu maior sofrimento é a impossibilidade de ir visitar o filho mais velho, que está preso. Ignorando tudo sobre o sistema penal, Jacileide sofre pois não sabe os trâmites que deve percorrer (sem sair de casa) para conseguir liberação do juiz para ir até o filho.
A narrativa contrapõe esta história à do deputado Dison Lisboa. Há um elemento cômico que se concretiza na performance típica da política: seus assessores tentam, de forma atrapalhada, explicar com eufemismos as razões pelas quais seu chefe foi condenado. Diante da equipe do programa, Dison Lisboa tenta, de modo constrangedor, controlar sua imagem e parecer “apresentável”. Ao ser entrevistado, elogia o tempo todo o repórter do Profissão Repórter, a quem chama de simpático e agradável. Mas o repórter permanece firme: ele pede ao político para que mostre a sua tornozeleira, tal como fez Jacileide e tantos outros condenados pobres que foram mostrados no programa.
E aí o episódio culmina em uma espécie de suspense guardado até o final: irá o deputado deixar ou não que as câmeras do Profissão Repórter filmem sua tornozeleira? Ao fim da edição, o programa segue firme na sua proposta, analisando as coisas como elas são e levando o público até a vida das pessoas. Mas, mais do que isso, assume claramente uma visão de mundo em prol da igualdade e da justiça social – algo que deveria ser, necessariamente, prioridade em todo empreendimento jornalístico.